segunda-feira, 27 de outubro de 2025

O que vão dizer?

 


Para Alís,


– ¿Cómo supiste que uso lápiz labial rojo?

Intrigado, Carlos não dizia nada. Apenas observava a boca. Sedento. Ela, desprovida de troncos, e membros, e cabeça, como não? havia a boca no meio da sala, "só, somente só, boca, boca, boquinha, assim vou lhe chamar", sedenta também. É o que parecia.

Incandescente, a pergunta da boca reverberava entre as paredes do apartamento. A única que a boca fez antes de passear pelos cômodos do ap.. Ela se bastava é o que parecia dizer enquanto andava de um lado a outro com desenvoltura.

Carlos, ainda intrigado, lhe estendeu uma taça de vinho. A boca declinou. Onde o rosto se completava? Olhos? Nariz? Cabeça? E os membros? Transparentes?

Carlos teve impulso de encostar-lhe a taça de vinho que degustava para entreabrir seus lábios, forçando-a a aceitá-lo. Não o fez. Mas lhe perguntou, com desvelo, porque achava a cena inusitada, e porque não queria também parecer desrespeitoso com a boca:

– Então, por que você não me beija?

Não houve resposta. Carlos entrou no banheiro, a boca o acompanhou. Puxou o zíper, a boca virou para o outro lado, mas não saiu do banheiro. Aguardou que ele puxasse a descarga. Carlos teve um impulso: saiu sem ensaboar as mãos. E a boca não lhe disse: "volte, onde fica a higiene, lave as mãos". Ele foi à cozinha e sentiu as pegadas da boca; (uma boca que tem uma boa pegada como esta assusta, não é mesmo? - se perguntou). Entrou no quarto, no gabinete de trabalho, e a boca, decidida, lhe seguia os passos.

Carlos arriscou:

– Acho que você tem razão boca, as pessoas devem dar um tempo para se conhecerem. Se você soubesse o quanto eu queria avançar o sinal, sem saber o que ocorreria. 

A boca fingiu não entender que era com ela que Carlos falava. Mas entendia tudo. Sua expressão labial não mudava, e a boca tinha o senso incrível de direção, pois não perdia Carlos do seu alcance. Conheceu todo seu espaço, seu habitat, sua morada, porque não saía de perto dele. Assim lhe parecia: aquela boca tinha olhos.

Aquele rubro se mantinha inalterado, aqueles lábios pediam para serem tocados, mordidos. Era tudo que ela queria, ele supunha. Seria a vergonha que não a deixaria que ela lhe pedisse um beijo, como parecia desejar?

Por sua vez, Carlos sabia que uma lambida naqueles lábios vermelhos despertaria a boca para cumprir as promessas que se lia na transparência de cada “olhar”. 

E já passava da meia-noite e a boca-cinderela não se despedia. Instigado como estava, Carlos resolveu deitar-se. Apagou a luz e a boca se deitou ao seu lado.

Amanheceu e o invisível que existia na boca persiste e Carlos desanda por descaminhos a repetir: vão dizer que a boca não existe.  

 

(José Carlos Sant Anna)


4 comentários:

  1. Querido Eros amigão!
    Não posso apenas comentar e ponto.
    li teu texto como quem entra num sonho. Tudo ali é carne e metáfora, voz e silêncio, fogo e ausência. A boca, desmembrada, sem rosto nem corpo, é a encarnação do desejo em sua forma mais pura e mais terrível: o desejo que não precisa de corpo para existir, porque é, ele mesmo, o corpo.

    Carlos, esse homem perplexo e terno, tenta lidar com algo que o ultrapassa e é aí que o conto se torna profundamente humano. Ele oferece vinho, busca o gesto cotidiano, tenta dar forma e ritual àquilo que é só impulso. A boca, porém, recusa. Ela não quer o vinho; quer o sangue do espanto. Quer ser vista, mas não possuída. Quer existir como presença que persegue, não como corpo que se entrega.

    Há algo de sagrado na recusa. A boca não beija, não fala, não consente: observa. É o desejo que tem olhos, que vigia o homem que o criou. E Carlos, dominado, passa a ser perseguido pela própria fome que tentou esconder sob palavras educadas. Ele é o Adão diante do fruto e a boca é o fruto que não se colhe.

    O conto todo pulsa numa ambiguidade: o erotismo da ausência. O prazer que não se consuma, mas que cresce no não dito, no quase, no gesto suspenso. O texto se move na fronteira entre o delírio e a solidão e o que resta, no fim, é a certeza de que o desejo é uma invenção que insiste em parecer real.

    “Vão dizer que a boca não existe”, diz Carlos. E é verdade não existe fora dele. Mas dentro, oh, dentro ela continua. A boca o habita, o morde por dentro, o faz repetir o nome de um fantasma vermelho.

    Teu texto, Eros, é o retrato do desejo quando já não cabe no corpo.
    É o reflexo onde o amor se reconhece como delírio e ainda assim, insiste em ser chamado de amor.

    Com admiração
    Fernanda

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    1. Nanda, muito agradecido por essa pintura. O processo de criação comunga com o de poetizar e você viu a vida de Carlos pulsando no desejo e a poetizou lindamente. E como você soube fazê-lo, como soube utilizar as palavras trazendo a novidade do seu olhar para o minha narrativa.
      Totalmente demais este olhar, risos.
      Abraços, minha querida amiga!
      José Carlos

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  2. Olá, caro amigo José Carlos, meus parabéns pelo
    excelente conto, que me levou curioso até o seu final.
    Então, não é verdade que a cidade de Salvador também
    tem o seu Kafka?
    Na verdade tem o seu Kafka Baiano!
    Votos de uma ótima semana, com saúde e paz!
    Grande abraço do seu amigo do Sul.

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  3. Boa noite de paz, José Carlos!
    "A boca tinha o senso incrível de direção, pois não perdia Carlos do seu alcance."
    Sim, ela não perde a oportunidade de dar uma boa 'cantada' e segue firme em seu propósito, pode ser feminina ou masculina...
    Escrever um texto assim não é para quem quer, aplausos!
    Senti uma descrição dos relacionamentos bem atuais e temos que fugir deles... como o personagem fez... coragem para não cairmos na arapuca de algumas 'bocas'...
    Tenha dias abençoados!
    Abraços fraternos

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O que vão dizer?

  Para Alís, –  ¿Cómo supiste que uso lápiz labial rojo? Intrigado, Carlos não dizia nada. Apenas observava a boca. Sedento. Ela, desprovida...