Para Alís,
– ¿Cómo supiste que uso lápiz labial rojo?
Intrigado,
Carlos não dizia nada. Apenas observava a boca. Sedento. Ela, desprovida de troncos, e
membros, e cabeça, como não? havia a boca no meio da sala, "só, somente só,
boca, boca, boquinha, assim vou lhe chamar", sedenta também. É o que
parecia.
Incandescente,
a pergunta da boca reverberava entre as paredes do apartamento. A única que a boca
fez antes de passear pelos cômodos do ap.. Ela se bastava é o que parecia dizer
enquanto andava de um lado a outro com desenvoltura.
Carlos,
ainda intrigado, lhe estendeu uma taça de vinho. A boca declinou. Onde o rosto se
completava? Olhos? Nariz? Cabeça? E os membros? Transparentes?
Carlos
teve impulso de encostar-lhe a taça de vinho que degustava para entreabrir seus lábios, forçando-a a aceitá-lo. Não o fez. Mas lhe perguntou, com desvelo, porque
achava a cena inusitada, e porque não queria também parecer desrespeitoso com a
boca:
–
Então, por que você não me beija?
Não
houve resposta. Carlos entrou no banheiro, a boca o acompanhou. Puxou o zíper,
a boca virou para o outro lado, mas não saiu do banheiro. Aguardou que ele
puxasse a descarga. Carlos teve um impulso: saiu sem ensaboar as mãos. E a boca
não lhe disse: "volte, onde fica a higiene, lave as mãos". Ele foi à cozinha e sentiu as
pegadas da boca; (uma boca que tem uma boa pegada como esta assusta, não é mesmo? - se
perguntou). Entrou no quarto, no gabinete de trabalho, e a boca, decidida, lhe
seguia os passos.
Carlos
arriscou:
–
Acho que você tem razão boca, as pessoas devem dar um tempo para se conhecerem.
Se você soubesse o quanto eu queria avançar o sinal, sem saber o que ocorreria.
A
boca fingiu não entender que era com ela que Carlos falava. Mas entendia tudo.
Sua expressão labial não mudava, e a boca tinha o senso incrível de direção, pois não
perdia Carlos do seu alcance. Conheceu todo seu espaço, seu habitat, sua morada, porque não saía de perto
dele. Assim lhe parecia: aquela boca tinha olhos.
Aquele rubro se mantinha inalterado, aqueles lábios pediam para serem tocados,
mordidos. Era tudo que ela queria, ele supunha. Seria a vergonha que não a deixaria que ela lhe
pedisse um beijo, como parecia desejar?
Por
sua vez, Carlos sabia que uma lambida naqueles lábios vermelhos despertaria a
boca para cumprir as promessas que se lia na transparência de cada
“olhar”.
E já passava da meia-noite e a boca-cinderela não se despedia. Instigado como estava, Carlos resolveu
deitar-se. Apagou a luz e a boca se deitou ao seu lado.
Amanheceu e o invisível que existia na boca persiste e Carlos desanda por descaminhos a repetir: vão dizer que a boca não existe.
(José
Carlos Sant Anna)

Querido Eros amigão!
ResponderExcluirNão posso apenas comentar e ponto.
li teu texto como quem entra num sonho. Tudo ali é carne e metáfora, voz e silêncio, fogo e ausência. A boca, desmembrada, sem rosto nem corpo, é a encarnação do desejo em sua forma mais pura e mais terrível: o desejo que não precisa de corpo para existir, porque é, ele mesmo, o corpo.
Carlos, esse homem perplexo e terno, tenta lidar com algo que o ultrapassa e é aí que o conto se torna profundamente humano. Ele oferece vinho, busca o gesto cotidiano, tenta dar forma e ritual àquilo que é só impulso. A boca, porém, recusa. Ela não quer o vinho; quer o sangue do espanto. Quer ser vista, mas não possuída. Quer existir como presença que persegue, não como corpo que se entrega.
Há algo de sagrado na recusa. A boca não beija, não fala, não consente: observa. É o desejo que tem olhos, que vigia o homem que o criou. E Carlos, dominado, passa a ser perseguido pela própria fome que tentou esconder sob palavras educadas. Ele é o Adão diante do fruto e a boca é o fruto que não se colhe.
O conto todo pulsa numa ambiguidade: o erotismo da ausência. O prazer que não se consuma, mas que cresce no não dito, no quase, no gesto suspenso. O texto se move na fronteira entre o delírio e a solidão e o que resta, no fim, é a certeza de que o desejo é uma invenção que insiste em parecer real.
“Vão dizer que a boca não existe”, diz Carlos. E é verdade não existe fora dele. Mas dentro, oh, dentro ela continua. A boca o habita, o morde por dentro, o faz repetir o nome de um fantasma vermelho.
Teu texto, Eros, é o retrato do desejo quando já não cabe no corpo.
É o reflexo onde o amor se reconhece como delírio e ainda assim, insiste em ser chamado de amor.
Com admiração
Fernanda
Nanda, muito agradecido por essa pintura. O processo de criação comunga com o de poetizar e você viu a vida de Carlos pulsando no desejo e a poetizou lindamente. E como você soube fazê-lo, como soube utilizar as palavras trazendo a novidade do seu olhar para o minha narrativa.
ExcluirTotalmente demais este olhar, risos.
Abraços, minha querida amiga!
José Carlos