Arrasado, Esconso
liga para o terapeuta:
– Tô na pior,
cara, preciso de uma sessão extra.
– O que houve?
– Na sessão, eu
lhe conto.
– Como você achar
melhor!
O terapeuta
consulta a agenda e diz:
– Hoje, às 21
horas, no Confidente, lá só se morre uma vez! Sim, é aquele
cantinho, esse mesmo, no caminho das árvores; estou vendo, você é esperto, não
esqueceu! A mesa é a do fundo, estará reservada; antes, passe no quiosque de
batatas fritas, o recomendado; o outro não serve; lá você encontrará
suprimentos para nossa conversa. Quanto à cerveja, no cantinho, tem
uma fonte.
Esconso agradece
e desliga o telefone. E aproveita o intervalo até a hora da sessão para
repaginar as duras cascas de vida que teve com Lazie, a moça do litoral, que o
assedia há anos; faz essa repaginada no tapete da sala de estar antes de
dirigir-se ao Confidente, perguntando-se pensativo: “O que pretende
essa moça? Quanta loucura se esconde sob "tantas palavras"? Em seguida, pensa no
quinhão de pedidos de desculpas e salamaleques que ela traz à tiracolo e como
os despacha quando se desequilibra porque pisou na bola. Seria essa moça
bipolar como parece? Ou seria ele?
Meditando sobre
esse filme em cores, Esconso descobre que ele (o filme) está cheio de ilusões, de
fantasias; desde a primeira cena sabia que havia alguma coisa errada com os
dois protagonistas: nos diálogos, embora longos, na maioria das vezes não saíam
das bordas. Eles nunca se viram nos parques e shoppings da vida; não se
conhecem; nunca fecharam as pálpebras juntos, sequer dormiram no tapete, a
única coisa registrada na sua agenda era a referência ao litoral que ela exibia
nas suas notas e pelas redes sociais.
Experiente, o terapeuta se divertia
enxugando a tulipa da cerva estupidamente gelada, o monossílabo da foca,
quando, a água ainda a escorrer dos cabelos, Esconso chegou, suado, e desabou
na cadeira.
– Calma, cara.
– Que bom que
você já está aqui.
– Respire. Tome
uma chupeta da minha cerveja, enquanto a sua não chega.
Em seguida,
Esconso exclamou: “como é estranho o ser humano. Nunca conseguimos ser normais!
– Lazie me esvaiu
completamente, sabia?
E, apoiando-se
nos cotovelos, relaxava para começar a desentalar sua história, sem lembrar-se
do primeiro movimento que ambos fizeram até se transformar nesse celuloide.
– É agora,
comece. A cerveja está a caminho.
Esconso ri, ainda
que o terapeuta, à sua frente, pudesse não achar normal aquele riso fora de
hora. Justo agora, Esconso viaja com os poetas da praça que, volta e meia, nos
eventos, circulavam gritando pelas escadarias da escola: "para um amor
platônico / só uma transa homérica”; e repetiam, empolgados, entre outros, o
verso, ao subir e descer as escadas: "para um amor platônico / só uma
transa homérica", com um uníssono dos participantes do Seminário de
Literatura em palmas.
Nélida Piñon (1934-2022), a imortal
da Academia Brasileira de Letras, pouco se importou quando os poetas irromperam
o auditório, transgredindo os rituais do Seminário. O público, que esperava sua
palestra e depois o lançamento do seu livro No Calor da hora, se
surpreendeu com aquela festa antecipada e aplaudiu calorosamente os
poetas da praça.
O “terapeuta”
queria entender o que se passava na cabeça de Esconso, pois ele parecia uma
pessoa diferente do que pedira a sessão extra. Noutras palavras,
"viajava". Seria um milagre do quiosque de batatas fritas?
Faz tempo que ele não tem uma
felicidade nova com a moça do litoral, menos ainda uma transa homérica, como
reverberava Douglas, um dos poetas da praça, só via o ciúme escancarado nas
frontes da moça ao vê-la e ouvi-la nas redes; Esconso nunca entendeu a complexidade
de vida que a moça lhe oferecia.
A sessão ainda não começara e Esconso sentia que a liberdade é azul (Kizysztof Kieslowki, 1941-1996)) depois de ter mandado tudo às favas; faltava o último sorvo do primeiro chope para o terapeuta pedir-lhe para ocupar o imaginário divã de o Confidente.
José Carlos Sant Anna,
8 de setembro de 2025
Eros querido, muito querido!
ResponderExcluirQue narrativa fascinante! Fiquei completamente imersa na trajetória do Esconso, entre suas confusões, reflexões e encontros com o terapeuta. Adoro como você consegue equilibrar humor e profundidade, tornando cada detalhe, desde o quiosque de batatas fritas até o “celuloide” das lembranças, uma parte viva da história. É como se pudéssemos sentir a ansiedade, os pensamentos contraditórios e até o riso inesperado de Esconso, quase participando de sua viagem interior. O modo como você entrelaça o cotidiano com a fantasia os poetas da praça, as transas homéricas e as redes sociais revela com maestria a estranheza e complexidade da vida moderna, mas sem perder a leveza nem o encanto poético. Cada cena é quase cinematográfica, e o contraste entre a vida estruturada do terapeuta e o turbilhão de Esconso dá uma musicalidade incrível à narrativa. Senti também a sutileza das reflexões sobre os relacionamentos e a busca de felicidade, e como às vezes precisamos “mandar tudo às favas” para sentir as cores da liberdade algo que você descreve de forma tão vívida que é impossível não se conectar.
Parabéns por essa crônica tão inventiva, divertida e, ao mesmo tempo, profunda. É um convite para rir, pensar e viajar junto com os personagens.
Com carinho e admiração,
Nanda 😘🤗🙏🏻
Há sempre um lado ficcional que procura formas de expressão para a pluralidade dos sentimentos e das sensações. É o que faz com esta sua narrativa. Ao lê-lo os meus olhos pararam em Nélida Piñon com quem aprendi que enquanto falo e penso incorporo os outros nas minhas palavras. Admiro-a muito e chorei a morte dela. Quanto à história que conta fui projetada para o ecrã de um cinema onde pude ver o desenrolar de tanta ansiedade que quem a protagoniza. E gostei muito, meu Amigo José Carlos.
ResponderExcluirTudo de bom.
Um beijo.
Olá, Erós! Seu texto é uma mistura inteligente de lirismo, humor e crítica existencial. A ambientação inusitada e os personagens carregados de simbolismo revelam uma escrita ousada, sensível e original. Você transforma o banal em poesia com uma fluidez que surpreende e encanta. Excelente! Beijos
ResponderExcluirDemorei a constatar que o Amigo José Carlos tinha voltado, mas com um novo blog e resolvi visitá -lo ; esta crónica, leva-nos a pensar, mas também a sorrir perante as " trapalhadas " do Esconso ( o nome foi bem escolhido...). E no que me levou a reflectir? Precisamente na complexidade da mente do ser humano, uma mistura de emoções, encontros, desencontros, muitas incertezas perante um mundo cada vez mais turbulento, mais perigoso e onde se acha necessária uma correria desenfreada, deixando esse mesmo ser numa ansiedade terrível. E só lhe resta pedir ajuda a um terapeuta que muitas vezes está tão perturbado quanto os pacientes que tem de atender. É que a nossa sociedade não está para brincadeiras, Amigo....
ResponderExcluirNunca consultei um terapeuta, talvez por que a idade já me tenha ensinado que não vale a pena correr muito e que " amanhã será outro dia ", quem sabe sem chuva e muito sol a entrar pela nossa casa, atenuando a escuridão em que tantas vezes a nossa alma se encontra. Obrigada, Amigo e fica bem, com saúde e serenidade. Um abraço e até...
Emília 🌻 🌻
Tantas vezes que as vidas davam filmes! Uns de comédia, outros de terror, ou também de lirismo e outras dores...
ResponderExcluirMuito bom!
Ei moço!
ResponderExcluirVoltei aqui para te deixar um abraço, não resistindo vou comentar outra vez 😉
Eros, que delícia de texto! 😄
Entre risos e reflexões, Esconso nos leva por ruas da mente e da vida, com diálogos que pulsam e cenas que respiram.
É absurdo e real ao mesmo tempo, leve e profundo, como a vida mesma.
Parabéns por essa escrita que toca, diverte e deixa marcas.
😘
Nanda
Nanda, amiga querida, titio, risos, acaba de se submeter a uma cirurgia de catarata(s). Na ´terça-feira próxima passada, 9/9. Ainda convalesço. Não posso. Não devo abusar do computador e do telefone móvel e outras pequenas grandes. Volto já, já. Por você e por mim.
ExcluirUm super abraço, obrigado pelo carinho, sempre.
José Carlos
outras pequenas grandes coisas
ExcluirQuerido Eros,
ExcluirFico aliviada em saber que a cirurgia foi feita e que estás em recuperação. Cuida bem de ti para nós nesse tempo, sem pressa, sem abusar da visão o descanso também é poesia, mesmo quando parece silêncio.
Estaremos aqui à espera, mas sem cobrança, apenas com o desejo de que a luz volte aos teus olhos com mais nitidez do que nunca.
Obrigada por lembrar de mim mesmo nesse momento delicado tua amizade é um afeto que também cura. E eu estava com saudades de tuas poesias 🥰
Um abraço cheio de ternura e votos de pronta melhora,
Desta amiga que te admira demais Fernanda!😘🙏🏻
Para um dia de chuva nada melhor do que ler esse seu texto, amigo José Carlos. No recesso do sofá a beber um chá quentinho em vez da cerveja gelada lá do "Confidente". Pois, por cá o Outono está a anunciar-se com laivos de chuvinha miúda e vento fresco.
ResponderExcluirTraz-nos essa grande escritora Nélida Piñon, mulher de garra e força
com uma obra de respeito, que busca nas suas raízes galegas de par com a sua condição de cidadã brasileira matéria para desenvolver aquilo que nos é intrínseco. Sem falas mansas aborda a massa de que somos feitos, nos compõe e nos enleva. Enceta a sua última viagem em Lisboa e com pena vimo-la partir.
Deixo o Esconso entregue à sua "viagem", tentando compreender a complexidade da vida com que a moça do litoral lhe acenava.
Meu amigo, desejo-lhe um bom final de semana.
Beijinhos
Olinda
Olinda, amiga,
Excluirno dia do lançamento do livro No calor da Hora, Nélida conversou um pouco comigo depois de ter autografado o meu exemplar. A conversa foi curta.
No dia seguinte, porém, antes de começar sua palestra, Nélida me viu no meio da sala e da mesa onde se encontrava me chamou literalmente em voz alta (pelo o meu nome) para sentar-me na fila da frente.
Bom baiano, me comportei como o mestre Guimarães Rosa. mineiro da gema, em uma das suas narrativas, dizendo para mim mesmo: "Uai, eu".
Aquele chamado foi uma epifania para mim. Confesso!
Um bom final de semana, Olinda!
José Carlos
Que texto bom
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