domingo, 7 de dezembro de 2025

O rumor das pantufas

 


É claro. Zeloso, muito zeloso, abro o guarda-chuva para a noite. E me contemplo, zeloso. Absurdamente zeloso. É claro, onde já se viu, estapafúrdio e noturno, numa cidade tão quente como esta em que vivemos abrir-se um guarda-chuva à noite? Qualquer cidadão que traga a cabeça no lugar e os pés no chão achará absurdo esse gesto cômico ao se deparar com a cabeça coberta por uma guarda-chuva à noite. Por cima da cabeça, é claro, não poderia ser de outra maneira seu uso. O gesto é maquinal uma vez que a ponte, antes, era um elo, uma ligação, não seria exagero dizer íntimo, do curvar-se paulatino entre os protagonistas desta história: eu e ela. Não há dúvida: agora Inês é morta e descansa em paz ao lado de Pedro, não é mesmo? Ainda que a ponte esteja interditada, um cappuccino viria a calhar. Parcialmente interditada, mas não é tudo, você há de convir, leitor. Ela, a protagonista, e não Inês, proibiu quaisquer passos em sua direção feitos por mim. Suspeito é o que sou, e não um delituoso. É só uma suspeita. Nada mais. Ponto final. E se eu lhe mostrasse minhas pantufas, são as mesmas que revelam o tamanho da minha preguiça, pois me recuso a pensar em outra coisa, salvo a interdição. Creia em mim. Creia. Como me recuso a escrever qualquer coisa para salvar as aparências, ouso dizer-lhe: o que ela ama, são as minhas pantufas. E não me incomodo com o fato de não compreender tudo que ouço sobre a interdição, o importante não são as rosas que eu deixava na sua varanda todos os dias, são as pantufas, são elas que importam. Ela me queria todos os dias e às pantufas. Sem as pantufas, ela não me vê completo, arrota sem cerimônia em gestos e palavras. Pense em alguém que, sem culpas e remorsos, se lambuzasse de pantufas. É ela. Quantas mulheres tão próximas viram minhas pantufas e se entregaram às fantasias? Quantas vezes pediram que as deixasse em suas mãos. Falavam da sua maciez, tomavam-nas nas mãos como um brinquedo. Mas ela, a que se acreditava dona, não queria que ninguém as visse, que as tocasse. Não queria vê-las usurpadas. Há algum mal vê-las estiradas ao sol? Me equilibro nas histórias das pantufas, recubro-me de razão quando me descubro um skatista na hora de escrever. Queria mais? 

 

José Carlos Sant Anna, 

12 de outubro de 2025.








Um comentário:

  1. Olá, amigo José Carlos!
    Respondendo sem pensar: não, não queria.
    Está ótimo assim, na medida para para surfar de pantufas.
    Um texto bom de ler. Parabéns.
    Bjsssss, marli

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