É claro. Zeloso, muito zeloso,
abro o guarda-chuva para a noite. E me contemplo, zeloso. Absurdamente zeloso. É
claro, onde já se viu, estapafúrdio e noturno, numa cidade tão quente como esta
em que vivemos abrir-se um guarda-chuva à noite? Qualquer cidadão que traga a
cabeça no lugar e os pés no chão achará absurdo esse gesto cômico ao se deparar
com a cabeça coberta por uma guarda-chuva à noite. Por cima da cabeça, é claro,
não poderia ser de outra maneira seu uso. O gesto é maquinal uma vez que a ponte, antes, era um elo, uma ligação, não seria exagero dizer íntimo, do curvar-se
paulatino entre os protagonistas desta história: eu e ela. Não há dúvida: agora
Inês é morta e descansa em paz ao lado de Pedro, não é mesmo? Ainda que a ponte
esteja interditada, um cappuccino viria a calhar. Parcialmente interditada,
mas não é tudo, você há de convir, leitor. Ela, a protagonista, e não Inês,
proibiu quaisquer passos em sua direção feitos por mim. Suspeito é o que sou, e não um
delituoso. É só uma suspeita. Nada mais. Ponto final. E se eu lhe mostrasse
minhas pantufas, são as mesmas que revelam o tamanho da minha preguiça, pois me
recuso a pensar em outra coisa, salvo a interdição. Creia em
mim. Creia. Como me recuso a escrever qualquer coisa para salvar as aparências, ouso
dizer-lhe: o que ela ama, são as minhas pantufas. E não me incomodo com o fato de
não compreender tudo que ouço sobre a interdição, o importante não são as rosas
que eu deixava na sua varanda todos os dias, são as pantufas, são elas que importam.
Ela me queria todos os dias e às pantufas. Sem as pantufas, ela não me vê completo, arrota sem cerimônia em gestos e palavras. Pense em alguém que, sem
culpas e remorsos, se lambuzasse de pantufas. É ela. Quantas mulheres tão próximas viram
minhas pantufas e se entregaram às fantasias? Quantas vezes pediram que as deixasse em
suas mãos. Falavam da sua maciez, tomavam-nas nas mãos como um brinquedo. Mas
ela, a que se acreditava dona, não queria que ninguém as visse, que as
tocasse. Não queria vê-las usurpadas. Há algum mal vê-las estiradas ao sol? Me equilibro nas histórias das pantufas, recubro-me de razão quando me descubro um
skatista na hora de escrever. Queria mais?
José Carlos Sant Anna,
12 de outubro de 2025.

Olá, amigo José Carlos!
ResponderExcluirRespondendo sem pensar: não, não queria.
Está ótimo assim, na medida para para surfar de pantufas.
Um texto bom de ler. Parabéns.
Bjsssss, marli