segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Para um dia de chuva

 


Arrasado, Esconso liga para o terapeuta:

– Tô na pior, cara, preciso de uma sessão extra.

– O que houve?

– Na sessão, eu lhe conto.

– Como você achar melhor!

O terapeuta consulta a agenda e diz:

– Hoje, às 21 horas, no Confidente, lá só se morre uma vez! Sim, é aquele cantinho, esse mesmo, no caminho das árvores; estou vendo, você é esperto, não esqueceu! A mesa é a do fundo, estará reservada; antes, passe no quiosque de batatas fritas, o recomendado; o outro não serve; lá você encontrará suprimentos para nossa conversa. Quanto à cerveja, no cantinho, tem uma fonte.

Esconso agradece e desliga o telefone. E aproveita o intervalo até a hora da sessão para repaginar as duras cascas de vida que teve com Lazie, a moça do litoral, que o assedia há anos; faz essa repaginada no tapete da sala de estar antes de dirigir-se ao Confidente, perguntando-se pensativo: “O que pretende essa moça? Quanta loucura se esconde sob "tantas palavras"? Em seguida, pensa no quinhão de pedidos de desculpas e salamaleques que ela traz à tiracolo e como os despacha quando se desequilibra porque pisou na bola. Seria essa moça bipolar como parece? Ou seria ele?

Meditando sobre esse filme em cores, Esconso descobre que ele (o filme) está cheio de ilusões, de fantasias; desde a primeira cena sabia que havia alguma coisa errada com os dois protagonistas: nos diálogos, embora longos, na maioria das vezes não saíam das bordas. Eles nunca se viram nos parques e shoppings da vida; não se conhecem; nunca fecharam as pálpebras juntos, sequer dormiram no tapete, a única coisa registrada na sua agenda era a referência ao litoral que ela exibia nas suas notas e pelas redes sociais.

    Experiente, o terapeuta se divertia enxugando a tulipa da cerva estupidamente gelada, o monossílabo da foca, quando, a água ainda a escorrer dos cabelos, Esconso chegou, suado, e desabou na cadeira.

– Calma, cara.

– Que bom que você já está aqui.

– Respire. Tome um gole da minha cerveja, enquanto a sua não chega;

Em seguida, Esconso exclamou: “como é estranho o ser humano. Nunca conseguimos ser nomais!

– Lazie me esvaiu completamente, sabia?

E, apoiando-se nos cotovelos, relaxava para começar a desentalar sua história, sem lembrar-se do primeiro movimento que ambos fizeram até se transformar nesse celuloide.

– É agora, comece. A cerveja está a caminho.

Esconso ri, ainda que o terapeuta, à sua frente, pudesse não achar normal aquele riso fora de hora. Justo agora, Esconso viaja com os poetas da praça que, volta e meia, nos eventos, circulavam gritando pelas escadarias da escola: "para um amor platônico / só uma transa homérica”; e repetiam, empolgados, entre outros, o verso, ao subir e descer as escadas: "para um amor platônico / só uma transa homérica", com um uníssono dos participantes do Seminário de Literatura em palmas. 

    Nélida Piñon (1934-2022), a imortal da Academia Brasileira de Letras, pouco se importou quando os poetas irromperam o auditório, transgredindo os rituais do Seminário. O público, que esperava sua palestra e depois o lançamento do seu livro No Calor da hora, se surpreendeu com aquela festa antecipada e aplaudiu calorosamente os poetas da praça.

O “terapeuta” queria entender o que se passava na cabeça de Esconso, pois ele parecia uma pessoa diferente do que pedira a sessão extra. Noutras palavras, "viajava". Seria um milagre do quiosque de batatas fritas?

    Faz tempo que ele não tem uma felicidade nova com a moça do litoral, menos ainda uma transa homérica, como reverberava Douglas, um dos poetas da praça, só via o ciúme escancarado nas frontes da moça ao vê-la e ouvi-la nas redes; Esconso nunca entendeu a complexidade de vida que a moça lhe oferecia. 

A sessão ainda não começara e Esconso já sentia as cores da liberdade depois de ter mandado tudo às favas; faltava o último sorvo do primeiro chope para o terapeuta pedir-lhe para ocupar o imaginário divã de o Confidente.

 

José Carlos Sant Anna,

8 de setembro de 2025

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