quarta-feira, 30 de abril de 2025

Judith

 

Imagem Pixaby

Ela não tem pudor com as palavras, escreve-as como se tomasse um banho de rio, sobretudo se as usa para nomear objetos, pessoas, fatos, não importa. Ela diz o que sente. Ou sente o que diz, como se prolongasse aquele sol do meio-dia ou estivesse comendo figos em compotas, é o que me parece quando ela se lambuza com as palavras em seus bilhetes.

Por exemplo, ela transcreve a letra e nomeia uma valsinha de Chico Buarque e Vinicius de Moraes como samba, para acentuar o que leu nas entrelinhas da minha crônica, e o faz naturalmente, no calor da hora. No calor da escrita.

Na tampa. Sem releitura. Sem censura.

Ela desconhece (ou seria emoção ou pressa a fazê-la meter os pés pelas mãos) que o ritmo do samba é repetitivo e quase sempre vem acompanhado de instrumentos acústicos e de percussão, enquanto o ritmo da valsa, ternário, é lento, de movimentos suaves e fluidos, é aquele que dá voltas, como um par o faz no salão ao ouvir seu ritmo. E se este interlocutor lhe diz qualquer coisa sobre a impropriedade deste uso, ela dá de ombros, como se dissesse “descomplica, se você me entendeu. Eu quero é libertar o gigante do alçapão para a alegria de Gurgel, um dos senhores da escrita criativa".

E, enquanto os céus não desabam, este enredo, que não se tornará um samba, me faz recuar “dez casas” ou anos neste cabide. E o faço para brincar com as palavras, que é um modo de manter a chama acesa e por saber que toda imagem corrompe, ou anula ou inverte um sonho no dilúvio.

Aguardávamos ansiosos a mestra – mestra na acepção da palavra é o que ela sempre foi, pois deixou marcas indeléveis em sucessivas gerações – quando, às 14 horas em ponto, ela entrou na sala. Fitinha na cabeça e tênis, sem meias. Avançada para a época e para uma sala de aula em plena universidade. Ausência que nos consome e nos faz sentir seu hálito ainda hoje.

Curiosamente, após “a chamada”, ela avisou que não a repetiria nas aulas subsequentes, pois os alunos passariam a ocupar a cadeira com o respectivo número no Diário de Classe. Caso a cadeira não estivesse ocupada, o aluno seria considerado ausente. Esta foi uma das muitas idiossincrasias da mestra. E quem não as tem? Mas não nos desencantou. A mim e aos colegas, pois o que veio depois desanuviou a primeira impressão. Éramos os neófitos, e ela, a mestra.

E que fique claro, como o branco da roupa de Clarindo Silva da Cantina da Lua: não me lembro da mestra por esta singularidade, que não passa de um detalhe, e sim pelas lições sobre a literatura, sobre o fazer e o ler ficção, nela se inclui a poesia, “a mais pura das ficções”, que ela o fazia bem, com rigor, clareza, conhecimento, e não retirarei, aqui e agora, estas lições das prateleiras interiores ou dos livros que herdamos da sua pena. Predominava, à época, a escrita à mão ou a Lettera 28 ou 35, com seu ruído e engrenagem mágicos. Nela, fazíamos um pequeno nada parecer muito grande, e descobriríamos depois que não era bem isso muito menos aquilo.    

 Como suas palavras permanecem, saibamos com penhor que a professora passeava pelos jardins da sala de aula com desenvoltura, em perfeito equilíbrio, no embate com as coisas da literatura, inaugurando sempre uma rua nova para deleite dos que já tinham cruzado os umbrais deste casario e tinham se curvado ante as ampulhetas do banquete que as palavras propiciavam e que se deliciavam com o casario em volta, como se fosse o café da esquina. Nada ficava para trás nas escaramuças com as palavras. Suas águas ainda percorrem, sem fechaduras, taramelas ou cadeados, antigas estâncias entre os muros da universidade.

E os sóis que em mim se arvoram me fazem dizer que falta faz àquela menina uma destas pequenas lições para não confundir as fronteiras do real e do fictício – que falta faz ela não ter sido colega de turma – ou do que é tomado como “fingimento” na obra literária. Se ela soubesse... “A obra é a soma de todas as leituras; se permanece na gaveta, não há leitura, e se não há leitura, não há obra”, dizia a mestra, ela repensaria que o que há na sua busca ou o que há cavado na sua túnica não está nas entrelinhas, mas há, sim, esteios abertos. E, se isto é verdade, pode ter lugar para um Roberto Carlos ou para um D. Juan Carlos, apócrifo, como ela sugere.


José Carlos Sant Anna,

janeiro de 2025.

8 comentários:

  1. Não ter pudor com as palavras. Usá-las como se tomasse banho no rio. Sem regras. Sem censura.
    Que inspiradora esta sua crónica, meu Amigo. Encantou-me, como se o que escreveu fosse o reflexo da nossa responsabilidade de sermos felizes e acreditarmos que por dentro de tudo o que fazemos está a alegria da música e da dança e a singularidade de quem sabe que toda a inspiração vem das leituras que fazemos e acredita que só o amor permite iludir o tempo.
    Um forte abraço.

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  2. Crónica interessante...viver as palavras e fazer com que elas dancem connosco...é entrar no livro e viver intensamente o enredo, é deixar que a música nos liberte....
    Beijos e abraços
    Marta

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  3. Depois que li, reli e treli percebo uma complexidade de emoções,difícil de mensurar.A facilidade de verbalizar ao `pé da letra` é uma metáfora poderosa para entender esse enredo. Gostei dela. Escrever no calor da hora é bem mais poético que no calor do sol. Pode ser também a causa das `prateleiras interiores`, se a gente distrair perde o pudor,se lambuza e corre o risco de não dançar a valsa.Os cronistas entendem bem como separar o real do fictício - a verdade se sustenta conforme o desejo deles ,a ponto de confundir : ficção ou verdade absoluta? Interessante o texto José Carlos e minha admiração pelo cronista andou 10 casas .
    Como disse anteriormente, sua escrita é obrigatória e linda ..
    Ah,sempre haverá um lugar seguro para um Dom Juan Carlos , tâo incógnito quanto a Judith , (de quem todos temos um pouco), lambuzar que seja de figo em compotas ou sendo do lado de cá com chocolate suiço (com cautela, não é?)
    Cordiais Saudações

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  4. Recuar no tempo, e encontrar essa leveza nas memórias
    guardadas e fazer disso uma crónica tão instigadora,
    faz-me desejar vir aqui e embeber-me nesta leitura.
    Judith e a Mestra, dois ícones que as suas mágicas
    palavras nos apresentam, cada uma no seu estilo e
    cada uma na transmissão de valores e vivências que,
    também, nos fazem reviver outras idades, outros tempos,
    outros lugares.
    Tudo de bom lhe desejo, caro José Carlos.
    Grande abraço
    Olinda

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  5. Olá, beleza?
    Vi teu comentário no blog do Dan e vim ver teu espaço e já me dou com as caras com essa sensacional Judith. Nomear de samba uma valsinha, ainda que de Chico e Vinícius é re-criar com respeito. E ver o belo e achar-se na liberdade criativa de mudar a cor da beleza.

    "...deixou marcas indeléveis em sucessivas gerações .." são poucos que merecem tal reconhecimento.

    Curiosamente, esses dias no meu blog eu falei e comentei sobre o parto que é muitas vezes, trazer do nosso interior, aquele poema, aquela crônica, aquele quadro, aquele texto que cisma em se esconder. Sabemos que ele está ali mas não dar-se a conversas. É preciso trazê-los à luz à fórceps, muitas vezes.

    E repeti um verso do Drummond, que "lutar com as palavras é a luta mais vã".

    E não é?

    abraços

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  6. Há mestres que nos marcaram na escola.
    Excelente crónica. Caro amigo José Carlos, o seu texto é soberbo.
    Boa semana.
    Um abraço.

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  7. José Carlos, teu texto é uma ode à palavra vivida, sentida, lambuzada e nessa travessia literária, Judite emerge como um símbolo de liberdade, espontaneidade e verdade. Ela não escreve para caber: ela transborda. Desconhece os manuais e, talvez por isso, acerte onde muitos hesitam no calor da escrita, na coragem de nomear o mundo com o que lhe pulsa por dentro. Judite parece ser essa mulher que arrisca, que sente primeiro, que entrega o texto cruciante, suado, verdadeiro, como quem dança uma valsa com o coração acelerado de um samba. E tua narrativa, com sua precisão amorosa e memória aguçada, dá a ela uma moldura digna não de contê-la, mas de exaltá-la. Ao lado da mestra que ensinava com o corpo inteiro e dos céus que ainda não desabaram, Judite permanece: intensa, imprecisa, inclassificável. Talvez por isso, tão profundamente literária.

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  8. Muito boa leitura esta. Parabéns!
    Há sempre algum mestre que nos impulsiona.

    Retenho: “A obra é a soma de todas as leituras; se permanece na gaveta, não há leitura, e se não há leitura, não há obra”.

    Muito grata.
    Beijinhos.

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