terça-feira, 30 de setembro de 2025

Cena 1

 



    O gato parecia perdido ao caminhar pelas margens da ilha, quando os seus olhos se cruzaram com os de uma gata que o observava, esperando o que ele ia fazer de sua vida naquele momento. Quase nada, já se via. O gato se deixou tocar pelo olhar e estirou-se ao sol para sentir o clima sem queimar os pelos. A gata, depois de observá-lo, procurou o melhor ângulo e o capturou no click da troca de olhares e promessas. Vendo-a por dentro dos olhos, sentiu-se enredado naquela trama, e o pôr do sol da sua varanda seria o pretexto para levá-la ao seu apartamento. As canções francesas (o que se há de fazer se elas são eternas?) abafariam os miados para que não houvesse curto-circuito com a vizinhança. 

José Carlos Sant Anna, 
Primavera de 2025 





Entro em recesso para cuidar de uma pessoa da família,
assumindo o papel de cuidador para ajudar na sua permanência 
em nosso convívio. 
Usarei minha energia, na medida do possível, 
 para que ela retarde ao máximo a perda da lucidez, 
a que ainda lhe resta.
Agradeço antecipadamente a solidariedade 
e deixo um abraço para todos os amigos.










domingo, 21 de setembro de 2025

Doralice

 

"Doralice, eu bem que lhe disse

amar é tolice, é bobagem, é ilusão..."


Letra e música de Antônio Almeida 

e Dorival Caymmi, 1947.



Doralice contempla os morangos e os mirtilos sobre a mesa depois de bem lavados com detergente. Ela sabe como o fazer para deixá-los com brilho, como se tivessem sido encerados antes de expostos à mesa. Tão raro encontrá-los no mercado da praça central. “Como assim?” Pergunto em voz baixa para não incomodar o ritual da preparação do almoço. É lá que ela os compra para adoçar a boca, comendo-os de colher com leite como se ela fosse uma criança; alguém assopra essa novidade para mim como se abrisse um guarda-chuva dentro de casa. Do jeito que os comia, parecia que estava tendo um sonho erótico. Doralice gosta de ser criança e, também, dos sonhos eróticos que inundam seu corpo. Pequenas coisas para suportar o peso do mundo sobre seus ombros, diz a si mesma, ruborizando-se. E mastiga a letra da música que carrega seu nome, sem saber responder se amar é tolice, se é bobagem, se é ilusão. Doralice mantém o laço do pescoço ao João que levanta a voz à mesa, o que é raro. Duplamente, raro. Para um elogio, ao afirmar que o bacalhau à lagareiro estava excelente e, depois, voz levantada para reclamar a gargalhada à mesa, o que irrita Doralice. Ela exige muito dele? Ela tem a presunção de que ele não se sente velho demais para as demandas da amante fogosa que ela faz questão de não esconder. E isto se sustenta? Quanta tolice na pergunta. Não me ocorre nada que eu possa dizer no momento. Como? Doralice se estica toda, resignada, e se pergunta por que ela está unida a um homem que, só por acaso, se encontra à mão, perto de um tropeço? Cansada como Doralice se sente, ela não para de suspeitar da vida como se tudo em volta não passasse de uma plantação de hera, pois, como qualquer outra plantinha desta espécie no clima tropical, ela cresce rápido demais. 


José Carlos Sant Anna,

21 de setembro de 2025



domingo, 14 de setembro de 2025

Herança

 

Imagem Pixabay

                         para Maria Fernanda, aleatoriamente!


As inumeráveis águas para um café,

é o que ela me oferece. De bom grado,

me dobro ou curvo meu corpo

ante o convite; em seguida, sento-me

numa cadeira reclinável para sorver

o café sem pressa. É um culto.

Espero que meu impulso criador

dê o ar de sua graça sem nenhuma 

especulação metafísica e deixo 

que minha pulsação transcenda

o instante. A respiração é baixa, 

ritmada; tateio as bordas 

de cada palavra, de cada poema 

ante as realidades essenciais, 

que se esboçam. Sinto o calor do fogo 

enquanto examino a relação 

entre a xícara e os poetas que 

ao mesmo tempo prendem a minha atenção. 

Abrupto, me levanto, deito-me no chão 

juncado de folhas do outono

e me abandono ao verbo

 

                                    José Carlos Sant Anna, 

                                                 julho, 1, 2025


segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Para um dia de chuva

 


                 

                                               Sem invenção não há ficção

Arrasado, Esconso liga para o terapeuta:

– Tô na pior, cara, preciso de uma sessão extra.

– O que houve?

– Na sessão, eu lhe conto.

– Como você achar melhor!

O terapeuta consulta a agenda e diz:

– Hoje, às 21 horas, no Confidente, lá só se morre uma vez! Sim, é aquele cantinho, esse mesmo, no caminho das árvores; estou vendo, você é esperto, não esqueceu! A mesa é a do fundo, estará reservada; antes, passe no quiosque de batatas fritas, o recomendado; o outro não serve; lá você encontrará suprimentos para nossa conversa. Quanto à cerveja, no cantinho, tem uma fonte.

Esconso agradece e desliga o telefone. E aproveita o intervalo até a hora da sessão para repaginar as duras cascas de vida que teve com Lazie, a moça do litoral, que o assedia há anos; faz essa repaginada no tapete da sala de estar antes de dirigir-se ao Confidente, perguntando-se pensativo: “O que pretende essa moça? Quanta loucura se esconde sob "tantas palavras"? Em seguida, pensa no quinhão de pedidos de desculpas e salamaleques que ela traz à tiracolo e como os despacha quando se desequilibra porque pisou na bola. Seria essa moça bipolar como parece? Ou seria ele?

Meditando sobre esse filme em cores, Esconso descobre que ele (o filme) está cheio de ilusões, de fantasias; desde a primeira cena sabia que havia alguma coisa errada com os dois protagonistas: nos diálogos, embora longos, na maioria das vezes não saíam das bordas. Eles nunca se viram nos parques e shoppings da vida; não se conhecem; nunca fecharam as pálpebras juntos, sequer dormiram no tapete, a única coisa registrada na sua agenda era a referência ao litoral que ela exibia nas suas notas e pelas redes sociais.

    Experiente, o terapeuta se divertia enxugando a tulipa da cerva estupidamente gelada, o monossílabo da foca, quando, a água ainda a escorrer dos cabelos, Esconso chegou, suado, e desabou na cadeira.

– Calma, cara.

– Que bom que você já está aqui.

– Respire. Tome uma chupeta da minha cerveja, enquanto a sua não chega.

Em seguida, Esconso exclamou: “como é estranho o ser humano. Nunca conseguimos ser normais!

– Lazie me esvaiu completamente, sabia?

E, apoiando-se nos cotovelos, relaxava para começar a desentalar sua história, sem lembrar-se do primeiro movimento que ambos fizeram até se transformar nesse celuloide.

– É agora, comece. A cerveja está a caminho.

Esconso ri, ainda que o terapeuta, à sua frente, pudesse não achar normal aquele riso fora de hora. Justo agora, Esconso viaja com os poetas da praça que, volta e meia, nos eventos, circulavam gritando pelas escadarias da escola: "para um amor platônico / só uma transa homérica”; e repetiam, empolgados, entre outros, o verso, ao subir e descer as escadas: "para um amor platônico / só uma transa homérica", com um uníssono dos participantes do Seminário de Literatura em palmas. 

    Nélida Piñon (1934-2022), a imortal da Academia Brasileira de Letras, pouco se importou quando os poetas irromperam o auditório, transgredindo os rituais do Seminário. O público, que esperava sua palestra e depois o lançamento do seu livro No Calor da hora, se surpreendeu com aquela festa antecipada e aplaudiu calorosamente os poetas da praça.

O “terapeuta” queria entender o que se passava na cabeça de Esconso, pois ele parecia uma pessoa diferente do que pedira a sessão extra. Noutras palavras, "viajava". Seria um milagre do quiosque de batatas fritas?

    Faz tempo que ele não tem uma felicidade nova com a moça do litoral, menos ainda uma transa homérica, como reverberava Douglas, um dos poetas da praça, só via o ciúme escancarado nas frontes da moça ao vê-la e ouvi-la nas redes; Esconso nunca entendeu a complexidade de vida que a moça lhe oferecia. 

A sessão ainda não começara e Esconso sentia que a liberdade é azul (Kizysztof Kieslowki, 1941-1996)) depois de ter mandado tudo às favas; faltava o último sorvo do primeiro chope para o terapeuta pedir-lhe para ocupar o imaginário divã de o Confidente.

 

José Carlos Sant Anna,

8 de setembro de 2025

Do meu Diário

      Atravesso a  claridade úmida desta manhã de primavera. O rastro da chuva escorre pelos vidros das janelas. Eu me abalanço nos longes d...