Ah, Niterói! Nada do que é
inquietação passa por este nome, por esta cidade, que fica entre uma ponte, a
Rio-Niterói, e a cidade do Rio de Janeiro. Claro, qualquer brasileiro sabe
disso: a ponte é um cartão postal. “É pra lá que eu vou e ficarei alguns dias, a
esfriar a cabeça, a cuidar da casa da filha e, quem sabe, a minha estada perto
da obra de arte de Niemeyer, (que museu está ali construído!), me ajudará a não esquecer as cores do dia,
que já se confundem na minha cabeça; todo o mundo diz: cabeça quente é o diabo”,
escreve a moça inquieta, triste, como se autointitula em seu rascunho, sabendo que
Javier Milei não tomará conhecimento dele (do rascunho) ocupado com as finanças da Argentina; tampouco concederá asilo a um insano. Bastará ele, Milei, dirão os argentinos em uníssono.
E assim, desse modo prazenteiro, ela vai sugando como um bebê (com
bilhetes quilométricos) o leite de quem não atravessou a ponte; às vezes,
distende arco e flecha (ela perdeu o tacape, faz tempo) sabe lá Deus para quê.
Ou Piraquê, original, como os biscoitos, é o que quer o ser. A originalidade. Ela
sempre quer. E o outro não está nem aí; sempre à margem, olhando a paisagem.
Ela não cede. Ele é uma sebe. O que
as palavras habituam o ser, como o saber? Nunca atravessou essa ponte o pestinha, o ranheta, (como
ela o chama nos seus bilhetes), a que liga as duas cidades; ponte, ele
atravessou vezes sem conta, só a de madeira quando morava nas palafitas, lá na
cidade baixa, na sua terra Natal, a primeira Capital do país; ele era um
equilibrista com a lata na cabeça sobre uma rodilha ao atravessá-la correndo sem derramar
uma gota sequer da lata. Se houvesse lona como num circo, naquela ponte, que ligava o chafariz à sua casa, ele seria à luz do dia aplaudido
todos os dias.
Apesar de ter a mãe no seu pé, em marcação cerrada, ele
tinha pressa de encher o tonel para não perder o baba, (o corretor que nunca
jogou bola teima em corrigir o artigo masculino para o feminino a dizer-me a
baba), a pelada, como você queira chamar o futebol de várzea, (a depender do lugar em que você esteja no Brasil se chama esse futebol entre os garotos, não só entre os garotos, entre os adultos também, de uma ou de outra maneira, ou seja, há uma variação linguística, talvez existam outras que eu desconheço), quando o gol era paralelepípedos em lugar das traves.
"Ah, Niterói, como o Cristo Redentor lá no Corcovado, entreabra os braços para receber-me e ouça as palavras desse horizonte, quem sabe, ele não atravessa a ponte e quebra o silêncio que se impôs sem o remorso de uma despedida", escreve ela no seu rascunho antes de fechar as malas e pôr os chinelos.
Ela não vai para ficar lá, mas se demora; é o que se deduz pelos chinelos.
José Carlos Sant Anna,
23 de agosto de 2025.
Apesar de eu não ter entendido bem quem é "ela" e "ele", sei bem o que é o Baba. Moleque em Salvador, era assim que os amigos combinavam: "tal hora tem baba no campinho".
ResponderExcluirNiterói é uma bela cidade. E era tão amada pelo Rio, que lhe fizeram um cordão umbilical para que estivessem sempre unidos.
abraços, José Carlos.
Muito boa prosa.
ResponderExcluirQue ela se demore o tempo suficiente para engrandecer o coração.
Beijinhos e bom fim-de-semana!
Querido Eros,
ResponderExcluirO seu texto transborda delicadeza e inquietação, como se a própria Niterói respirasse junto. É impressionante como consegues entrelaçar memória, espaço urbano e emoção de maneira tão orgânica: a ponte, Niemeyer, o futebol de várzea tudo funciona como um mapa emocional, não apenas geográfico. A maneira como se apresenta, com suas inquietações e bilhetes, contrasta com a quietude do outro personagem, criando uma tensão quase poética entre presença e ausência, ação e contemplação. Eros você brinca com a linguagem, com digressões que parecem pequenas excursões de pensamento, revelando a complexidade do cotidiano e das lembranças. O final, sutil, dos chinelos deixa um rastro de expectativa, como se a própria cidade tivesse ficado em suspensão à espera de quem passa, mesmo que por pouco tempo. É uma crônica que convida cada um que passar aqui a atravessar pontes, físicas e emocionais, sem nunca perder o encantamento pelas pequenas coisas.
E eu como carioca chorei viajando nesta narrativa.
Saudades do RJ😘🙏🏻
Nanda!
Hermosa prosa Eros.
ResponderExcluirUn lujo leerte.
Besos