"Que por sorte..."
De longe é o que ela me diz em um bilhete apressado, mascando um chiclete, pretexto para quebrar o
silêncio, depois de ter fotografado a rua pela janela do apartamento dos filhos onde está alojada e anexado a foto à mensagem. Assim, ela me dá conta que chove do outro lado do mundo e os balões que sobem são do cappuccino, nunca banido da ordem do dia,
a dizer-me “a chuva e um friozinho invadem a cidade e pede um café bem quente,
você não percebe?”
E que sorte teve a menina, que sorte, tal como ela o confessou no bilhete. Mas... há sempre um mas se sobrepondo, o que se há de fazer? Antes, deixe-me dizer-lhe que a chamo de menina dissimuladamente faz tempo. Ela permitiu essa intimidade e até a alimentou. Só essa, nenhuma outra cresceu junto com o desejo que latejava. Nunca abriu as portas para qualquer outra manifestação. Só um flerte. Dura anos. Uma idealista, romântica sem cura. Qualquer semelhança com o José Matias, de Eça de Queirós, usando saia... Ela não gostou da comparação e amuou do outro lado...
E qual foi mesmo a sua sorte, qual, pergunta-me o leitor apressadinho?
Ter encontrado na “estante do quarto da família onde está alojada”, como o diz, A cidade do
Sol, do romancista e médico, nascido na cidade de Cabul, lá no Afeganistão, Khaled
Hosseini, publicado pela primeira vez em 2007.
Lá se vão 18 anos atravessando
o túnel do tempo. Um sopro. E por lá, pelo Afeganistão, talvez pouco tenha mudado, salvo
que não há mais o domínio Talibã.
O importante é ler, não é escrever, diz a amiga Betinha; há muito escritores por aí, são os leitores que fazem falta. Portanto, o atraso será recuperado num piscar de olhos. Depois, se ela ainda não sabe, descobrirá que Hosseini é o autor de O caçador de pipas e, assim, ela poderá continuar deitando os olhos até descobri-lo na estante, quem sabe?
É tanto “se” na vida de cada
um... E como sou um homem prático, imaginei que se a menina
tiver fôlego para as 384 páginas da edição brasileira de A Cidade do Sol, a vida nos dias de chuva do outro lado do mundo será preenchida com a realista história de Hosseini.
Só mais um naco de spoiler para dizer-lhe que Hosseini mostra a realidade das mulheres em um
Afeganistão controlado pelo grupo extremista Talibã sem nos poupar da
indiferença que a sociedade tem para com elas. Haja indiferença. É muito grave!
São duas mulheres. Na primeira
parte, o leitor conhece Marian, 33 anos, uma bastarda. Perdeu a mãe quando ela
tinha quinze anos, o homem que deveria ser seu pai a deu em casamento a um
sapateiro, um homem mais velho, e ela acreditava que deveria viver para
servi-lo.
Na segunda, conhece Laila, 14
anos, inteligente, filha de um professor, aplicada na escola e orientada desde
sempre que a vida é muito maior que se casar e ter filhos, ainda que sua
cultura lhe dissesse o contrário. A partir desse momento, o destino acaba
unindo a vida dos personagens, e o medo, a angústia, acompanha o leitor sem
saber o que de cruel ainda poderia acontecer até a percepção de que somos iguais
na diferença com os nossos pensamentos, sentimentos e mistérios.
A cidade do Sol para quem quer
ler algo que o faça refletir é um prato cheio a nos fazer pensar sobre a
injustiça e o sofrimento que as mulheres passam ao redor do mundo.
Em tempo, menina, guardarei um pouco do sol que ilumina as cortinas das janelas da casa para qualquer eventualidade enquanto há uma certa brisa e a esquina permanece aberta.
José Carlos Sant Anna,
maio de 2025.
Olha, achei instigante : O importante é ler, não é escrever, diz a amiga Betinha; há muito escritores por aí, são os leitores que fazem falta.
ResponderExcluirUma sábia declaração. Li Os Caçadores de Pipa há alguns anos mas não li Cidade do Sol. Teu texto refrescou minha memória de que preciso ler esse também.
Você escreve de forma muito elegante.
Concordo com o comentário do Eduardo sua escrita além de elegante é inspiradora e instiga a leitura desse grande escritor Hosseini. Eu li e gostei. Retrata a vida de muheres afegãs, com destinos semelhantes e conflitos religiosos e étnicos.
ResponderExcluirVale muito as 384 páginas.
E vale ainda mais se deliciar com o cronista JCSant Anna, e o sol iluminando suas janelas.
Obrigada e abraços.
Eros, que crônica delicada e, ao mesmo tempo, tão potente! Você entrelaça o cotidiano e a literatura com um lirismo que faz o leitor atravessar o bilhete, a chuva, o café e pousar, quase sem perceber, no coração ferido do Afeganistão. “A Cidade do Sol” não poderia ser melhor companhia para dias nublados — e para almas que, como a “menina”, guardam em si a leveza do flerte e a profundidade das dores do mundo. Sua escrita tem esse dom raro: a suavidade que provoca, que inquieta, que carrega ternura sem perder o peso do real. Sim, ler é um ato de resistência, de empatia, de reconstrução interior. E você, ao escrever, nos convida justamente a esse reencontro com a humanidade.
ResponderExcluirBravo, e obrigada.
Deve ser muito bom ler esse livro "A cidade do sol" de Khaled Hosseini. Eu não li e é pena porque a reflexão que sugere é muito importante para mim. Vou procurar ler esse livro que fala da injustiça e sofrimento sobre as mulheres não só no Afeganistão mas pelo mundo fora. Concordo com a amiga Betinha sobre a importância de ler. Como referiu Eduardo Lourenço é como leitores que somos literatura, paisagem invadida e iluminada por todas as emoções.
ResponderExcluirObrigada por partilhar aqui a sua escrita tão sensível e inteligente.
Tudo de bom, meu Amigo José Carlos.
Um beijo.
O texto é um misto de crônica e resenha, tecendo um relato sensível que mescla o cotidiano de uma personagem com a dura realidade retratada em *A Cidade do Sol*, de Khaled Hosseini. A narrativa transita habilmente entre a intimidade da troca de mensagens e a vastidão dos temas abordados no romance, criando um contraste entre o cenário acolhedor do apartamento e o contexto brutal do Afeganistão. A referência ao *José Matias* de Eça de Queirós confere um tom literário refinado, sugerindo que a protagonista é uma idealista presa a um amor platônico, enquanto a leitura do livro parece ser um despertar para realidades mais cruas. A voz narrativa é irônica e terna, revelando a preocupação do narrador com a “menina” e a intenção de acender um sol metafórico em meio às tempestades da vida. A última linha, com sua promessa de guardar um pouco do sol, é um fecho poético que toca o leitor com uma delicada esperança. Um texto envolvente, com camadas sutis e um lirismo que pulsa entre as linhas.
ResponderExcluirBEIJOS
Magnífico texto, que dá gosto ler.
ResponderExcluirIsto é literatura a valer.
Boa semana caro amigo.
Um abraço.
Olá, Jose Carlos
ResponderExcluirUma excelente resenha. Li o Caçador de pipas, e estou muito interessada na Cidade do sol. Principalmente depois que li seu post.
Tenho sempre um bocadinho de sol para dias frios e nublados. Seja bem vindo ao esconderijo.
feliz dia.
ResponderExcluirUm texto para ser relido, saboreado e guardado no coração.
Beijos
Num tom fluido e encantatório, apresenta-nos este livro de K. Housseini, "A cidade do Sol", e, de passagem, também refere "O caçador de pipas". Um gosto ler este seu texto em forma de missiva, um bilhete gostoso ao qual chama o "José Matias" com o seu interesse platónico que não "desemburra"...
ResponderExcluirQuanto ao tema do livro, as mulheres têm passado por situações deveras difíceis, desde sempre, e se no mundo dito ocidental se têm verificado melhorias o mesmo não se verifica em países como o Afeganistão.
Uma leitura urgente, tanto deste como de outros livros que versem sobre a matéria.
Grande abraço, José Carlos.
Olinda
Olá!
ResponderExcluirParabéns pelo texto, uma prosa poética, uma crônica/resenha muito agradável de ler.
"A Cidade do Sol" é um livro inesquecível. Literatura de verdade. E nesse livro, Khaled Hosseini se superou(!) desenhando duas personagens incríveis, absolutamente contrastantes, íntegras e inteiras, cada uma com seus próprios dramas e frustrações. E o final é surpreendente.
Também li "O Caçador de Pipas", outro livro daqueles "para sempre".
Adorei você ter trazido à lume esse livro (que certamente está em muitas prateleiras, sem leitura). Um livro considerado "antigo" para os modernos leitores da atualidade.
Abraços, Marli.