O ruído na fechadura da casa fez-me fechar o livro Lima Barreto, Cronista do Rio,
organizado por Beatriz Resende e publicado pela Autêntica Editora e Fundação Biblioteca
Nacional em 2017. Aguardei a última volta da chave e a porta se abriu.
– Oi, pai – me cumprimentou
Carol, a filha mais velha.
É o
jeito de um sol a romper o modo como ela fala comigo desde mocinha, sempre
amorosa.
A mãe, aquela luz de um olhar profundamente humano, logo que percebeu o ruído veio ao seu encontro no corredor da casa. Elas se abraçaram de um jeito que parecia não ter mais fim. Eu, olhos compridos no corredor, aguardando a minha vez. Ela se aproximou e meu deu um beijo na testa, quando eu já abria a boca para perguntar se ela não tinha pai, frase que eu ouvira de o tio Pita. Certa feita, zangado com a filha Belo, ele ligou para a gente, uma vez que morávamos em prédios contíguos, nós e Belo, e disse sem rodeios, nos pedindo desculpas pelo incômodo, quando a sobrinha atendeu o telefone:
"Minha filha, por favor, vá até a casa de Belo, e diga-lhe que estou ao telefone, quero saber se não ela não tem pai. Pode dizer-lhe exatamente assim – disse-o como se ainda vestisse a farda que moldou o seu autoritarismo –, se puder, ponha um pouco de irritação na voz. Ela vai entender."
–
Falei com você quando eu entrei, meu pai. Ciumento, reencarnação de tio Pita –
brincou. – Nem ligo para suas bobagens, já conheço suas gracinhas,
sua pirraça.
Em seguida, fez uma pequena pirueta como se ainda estivesse na aula de ballet e perguntou:
– Está
lendo o quê? – perguntou-me, com o seu riso brejeiro, já empunhando a caixa de
chocolates que parecia esperar por ela, viciada que é neles.
Cultivamos
o hábito de antes de qualquer outro assunto, salvo se houver alguma urgência,
de saber um do outro o que cada um está lendo, ou fazendo culturalmente, se há
algum programa de Museu, de teatro, festival de rua etc.
Mostrei-lhe o livro de Lima Barreto dizendo-lhe que fora um presente de Chico Castro, editor do Caderno 2 do jornal A Tarde e seu companheiro de jornada pela vida, ao se mudarem para o apartamento no Jardim das Margaridas. Acrescentei que valia a pena dar uma lida para conhecer o retrato da cidade do Rio de Janeiro de 1920 a 1930. A cidade se desenvolveu, mas as desigualdades continuam as mesmas até hoje. É uma tristeza. É assim no país inteiro, o que se há de fazer!
Ela
tomou o livro entre as suas mãos, olhou as imagens de Marc Ferrer, Augusto
Malta e alguns anônimos que ilustram suas páginas e me disse que entraria na
fila, pois sabia que Lima Barreto tinha sido um dos melhores cronistas da
cidade do Rio de Janeiro daquela época.
– Se
Helga quiser furar a fila, eu não me incomodo, pai. Tenho uma pauta de leituras extensa e ela
também, eu sei, passo a minha vez adiante.
– E
você, o que tem sobre a sua mesa?
– Muita
coisa, pai. Queria muito a bolsa do pós-doc. Mas estou pausando debruçada
sobre Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
–
Lendo? Ou relendo?
–
Lendo, não li na época do vestibular, no ensino médio. Mas estou gostando apesar do atraso. Mudou
muito pouco da década de 1930 para cá, não foi?
– Pouca coisa. Por isso, entre outras razões, continua sendo uma boa leitura, para a gente não esquecer o Brasil que não mudou, o país do atraso. É o mestre Graça, de Palmeira dos Índios. É uma espécie de romance desmontável. Cada capítulo é uma história fechada. Fabiano, Sinhá Vitória, O menino mais novo, O menino mais velho, Baleia, O soldado amarelo, Tomás da Bolandeira, Sinhá Vitória. Estruturalmente são contos. Depois, vá atrás de Angústia para conhecer o drama de Luís da Silva. Esse romance é visto pela crítica como o melhor escrito por ele. Vale a pena conhecer outros livros dele: São Bernardo, Caetés, Alexandre e outros heróis, Memórias do Cárcere, Infância. Você, que é uma competente jornalista, tem muito a aprender com a linguagem de Graciliano Ramos e seu estilo inconfundível. Nas minhas estantes, há uma edição, primorosa, de Vidas Secas, capa dura, ilustrada. Pode levar... É uma edição Comemorativa dos 70 anos de publicação da obra.
– Ora, pai, sem spoiler, achei que você já estivesse aposentado – disse-o com um sorriso largo em tom galhofeiro, imitando o pai.
– Mas
a gente não esquece, não é filha! Tudo fica guardado, bem guardado nas suas
prateleiras, quando a gente precisa, vai lá e traz para a roda da conversa. A
propósito, acabei de reler O Quinze, de Rachel de Queiroz...
De repente, a sineta que
decora a sala de trabalho do pai tiniu sacudindo a todos. Era Helga. Ela
chegara mais cedo e estava trancada no escritório dele acabando de criar uma
capa para um livro novo cujo título é Pelas ruas e disse:
– É
hora de um Capuccino com os doces da “bolacheira”. Eu os trouxe para esta
conversa amena não ter fim neste final de tarde de domingo...
"Mãe, vamos à bolacheira hoje?" Era o nome que as duas filhas deram a uma doçaria da infância frequentada aos domingos à tarde, lá no Campo Grande onde repousam os caboclos do 2 de Julho, dia da Independência da Bahia.
A doçaria se chama Casa de Chá Nubar, hoje localizada na Avenida Centenário, na minha terra onde cantam sabiás.
José Carlos Sant
Anna,
26 de maio de 2025