terça-feira, 27 de maio de 2025

Em família

 


O ruído na fechadura da casa fez-me fechar o livro Lima Barreto, Cronista do Rio, organizado por Beatriz Resende e publicado pela Autêntica Editora e Fundação Biblioteca Nacional em 2017. Aguardei a última volta da chave e a porta se abriu.

        – Oi, pai – me cumprimentou Carol, a filha mais velha. 

É o jeito de um sol a romper o modo como ela fala comigo desde mocinha, sempre amorosa.

A mãe, aquela luz de um olhar profundamente humano, logo que percebeu o ruído veio ao seu encontro no corredor da casa. Elas se abraçaram de um jeito que parecia não ter mais fim. Eu, olhos compridos no corredor, aguardando a minha vez. Ela se aproximou e meu deu um beijo na testa, quando eu já abria a boca para perguntar se ela não tinha pai, frase que eu ouvira de o tio Pita. Certa feita, zangado com a filha Belo, ele ligou para a gente, uma vez que morávamos em prédios contíguos, nós e Belo, e disse sem rodeios, nos pedindo desculpas pelo incômodo, quando a sobrinha atendeu o telefone: 

"Minha filha, por favor, vá até a casa de Belo, e diga-lhe que estou ao telefone, quero saber se não ela não tem pai. Pode dizer-lhe exatamente assim – disse-o como se ainda vestisse a farda que moldou o seu autoritarismo –, se puder, ponha um pouco de irritação na voz. Ela vai entender."

– Falei com você quando eu entrei, meu pai. Ciumento, reencarnação de tio Pita – brincou. – Nem ligo para suas bobagens, já conheço suas gracinhas, sua pirraça. 

Em seguida, fez uma pequena pirueta como se ainda estivesse na aula de ballet e perguntou:

– Está lendo o quê? – perguntou-me, com o seu riso brejeiro, já empunhando a caixa de chocolates que parecia esperar por ela, viciada que é neles.

Cultivamos o hábito de antes de qualquer outro assunto, salvo se houver alguma urgência, de saber um do outro o que cada um está lendo, ou fazendo culturalmente, se há algum programa de Museu, de teatro, festival de rua etc.

        Mostrei-lhe o livro de Lima Barreto dizendo-lhe que fora um presente de Chico Castro, editor do Caderno 2 do jornal A Tarde e seu companheiro de jornada pela vida, ao se mudarem para o apartamento no Jardim das Margaridas. Acrescentei que valia a pena dar uma lida para conhecer o retrato da cidade do Rio de Janeiro de 1920 a 1930. A cidade se desenvolveu, mas as desigualdades continuam as mesmas até hoje. É uma tristeza. É assim no país inteiro, o que se há de fazer!

Ela tomou o livro entre as suas mãos, olhou as imagens de Marc Ferrer, Augusto Malta e alguns anônimos que ilustram suas páginas e me disse que entraria na fila, pois sabia que Lima Barreto tinha sido um dos melhores cronistas da cidade do Rio de Janeiro daquela época. 

– Se Helga quiser furar a fila, eu não me incomodo, pai. Tenho uma pauta de leituras extensa e ela também, eu sei, passo a minha vez adiante.

– E você, o que tem sobre a sua mesa?

– Muita coisa, pai. Queria muito a bolsa do pós-doc. Mas estou pausando debruçada sobre Vidas Secas, de Graciliano Ramos.

– Lendo? Ou relendo?

– Lendo, não li na época do vestibular, no ensino médio. Mas estou gostando apesar do atraso. Mudou muito pouco da década de 1930 para cá, não foi?

– Pouca coisa. Por isso, entre outras razões, continua sendo uma boa leitura, para a gente não esquecer o Brasil que não mudou, o país do atraso. É o mestre Graça, de Palmeira dos Índios. É uma espécie de romance desmontável. Cada capítulo é uma história fechada. Fabiano, Sinhá Vitória, O menino mais novo, O menino mais velho, Baleia, O soldado amarelo, Tomás da Bolandeira, Sinhá Vitória. Estruturalmente são contos. Depois, vá atrás de Angústia para conhecer o drama de Luís da Silva. Esse romance é visto pela crítica como o melhor escrito por ele. Vale a pena conhecer outros livros dele: São BernardoCaetésAlexandre e outros heróisMemórias do Cárcere, Infância. Você, que é uma competente jornalista, tem muito a aprender com a linguagem de Graciliano Ramos e seu estilo inconfundível. Nas minhas estantes, há uma edição, primorosa, de Vidas Secas, capa dura, ilustrada. Pode levar... É uma edição Comemorativa dos 70 anos de publicação da obra.

– Ora, pai, sem spoiler, achei que você já estivesse aposentado – disse-o com um sorriso largo em tom galhofeiro, imitando o pai.

– Mas a gente não esquece, não é filha! Tudo fica guardado, bem guardado nas suas prateleiras, quando a gente precisa, vai lá e traz para a roda da conversa. A propósito, acabei de reler O Quinze, de Rachel de Queiroz...

        De repente, a sineta que decora a sala de trabalho do pai tiniu sacudindo a todos. Era Helga. Ela chegara mais cedo e estava trancada no escritório dele acabando de criar uma capa para um livro novo cujo título é Pelas ruas e disse:

– É hora de um Capuccino com os doces da “bolacheira”. Eu os trouxe para esta conversa amena não ter fim neste final de tarde de domingo...

"Mãe, vamos à bolacheira hoje?" Era o nome que as duas filhas deram a uma doçaria da infância frequentada aos domingos à tarde, lá no Campo Grande onde repousam os caboclos do 2 de Julho, dia da Independência da Bahia. 

A doçaria se chama Casa de Chá Nubar, hoje localizada na Avenida Centenário, na minha terra onde cantam sabiás.

 

José Carlos Sant Anna,

26 de maio de 2025

terça-feira, 20 de maio de 2025

Bela

 

Imagem Pixabay

Bela, a mais bela das belas. Ela chegou com os pais e o irmão àquele café depois do almoço em família. Trajava um vestido estampado, bem ajustado em seu corpinho. Estava bem elegante para os quatro aninhos no costado. Para os padrões atuais era uma criança bem-comportada. 

Enquanto não se descolou uma cadeira para sentar-se como uma mocinha, inquieta, ela subia e descia do colo da mãe. Depois, sentindo-se observada, repetiu a cena algumas vezes, sem incomodar-se. Achando tudo muito divertido. Ou seria um pouco menos a sua idade? 

Ela era esperta. Espertíssima. Depois de acomodada à cadeira e mesa, cedida ao seu pai por mim, ela se levantou e foi direta aos chocolates por onde a mãozinha, ávida, alcançava, pegando-os. Obediente, os devolveu às prateleiras quando seu pai, solenemente, disse-lhe que o fizesse. 

O pai procurava controlar os movimentos das crianças – um casal –, sem alarde e discreta firmeza. A mãe parecia dizer que não estava ali, nem aí, para o que fizessem. Ficou quieta aguardando o café, deixando ao pai o cuidado e a disciplina com os pequenos. 

Bela e o menino, um pouco mais velho, um ano talvez, se mexiam dentro da casa de chocolate, que, se via, eles conheciam bem pela desenvoltura. Ele queria o sorvete, uma especialidade da casa que ele tinha saboreado em outra oportunidade, pedia a cumplicidade da mãe, propondo uma partilha, mas aceitou o chocolate levado pela irmã “numa boa”, acatando a decisão do pai. Os pais beberam café e comeram, comedidos, pedaços de chocolate das crianças. 

Finda a pequena farra, os pais, educados, nos acenaram, éramos também uma família reunida, despedindo-se. Então, eu disse para a menina, que já se afastara, elevando um pouco a voz para que ela me ouvisse: “Ciao, Bela”. Os pais lhe disseram: “fale com o vovô”, e Bela voltou, correndo, e me deu um caloroso abraço, o que me fez lembrar de um velho amigo, advogado (ele me dizia com frequência "você tem idade para ser meu filho"), que, tendo já passado dos 80 anos, o que não é o meu caso, repetia para mim quando nos encontrávamos: “agora, Zé, tudo eu choro! Qualquer coisa! Ainda que seja uma coisa banal, lá estão os olhos umedecidos. Imagine, pareço manteiga, derreto com facilidade: uma cena na televisão, uma palavra, um gesto, tudo eu choro”. 

Bela não viu os meus olhos molhados quando ela me deu aquele abraço, amoroso, terno, que as crianças sabem fazê-lo na sua inocência. Me perguntei, então, depois que ela foi embora, passando discretamente o dorso da mão pelas pálpebras umedecidas: “Ainda longe dos 80 anos, será que estou ficando igual ao amigo advogado: qualquer coisa, eu me derreto?"

José Carlos Sant Anna,

abril de 2025.

quarta-feira, 14 de maio de 2025

No café

 

Imagem Pixabay

Finjo não ver o vento balançar
nas rochas nuas, encasteladas,
sobrepostas à delicadeza
da tua taça de rubiácea.

E se ao menos o café parisiense rasgasse
este coração à deriva e colhesse
o malmequer cansado dos dias
convicto, eu desvelaria outras sombras.

Lá a indiferença dos teus afagos
colados à sombra do teu chão,
e perto dos meus lábios, existiria,
na tentação absoluta que tu não vês.

Lá, além das blandícias das peles
e das mulheres, na angústia
de brumas tangíveis,
eu desbarataria a solidão barricada.

Por entre os dedos, resignado,
nada em mim te repele.
Confesso, sobrevivo aos mistérios
do meu café parisiense.

Lá noites estreladas prolongam
a melodia dos teus olhos castanhos,
hálito de anjos, que as palavras criam. 


José Carlos Sant Anna, 

reeditado

 

quarta-feira, 7 de maio de 2025

A cidade do Sol

 


"Que por sorte..."

De longe é o que ela me diz em um bilhete apressado, mascando um chiclete, pretexto para quebrar o silêncio, depois de ter fotografado a rua pela janela do apartamento dos filhos onde está alojada e anexado a foto à mensagem. Assim, ela me dá conta que chove do outro lado do mundo e os balões que sobem são do cappuccino, nunca banido da ordem do dia, a dizer-me “a chuva e um friozinho invadem a cidade e pede um café bem quente, você não percebe?”

E que sorte teve a menina, que sorte, tal como ela o confessou no bilhete. Mas... há sempre um mas se sobrepondo, o que se há de fazer? Antes, deixe-me dizer-lhe que a chamo de menina dissimuladamente faz tempo. Ela permitiu essa intimidade e até a alimentou. Só essa, nenhuma outra cresceu junto com o desejo que latejava. Nunca abriu as portas para qualquer outra manifestação. Só um flerte. Dura anos. Uma idealista, romântica sem cura. Qualquer semelhança com o José Matias, de Eça de Queirós, usando saia... Ela não gostou da comparação e amuou do outro lado... 

E qual foi mesmo a sua sorte, qual, pergunta-me o leitor apressadinho? Ter encontrado na “estante do quarto da família onde está alojada”, como o diz, A cidade do Sol, do romancista e médico, nascido na cidade de Cabul, lá no Afeganistão, Khaled Hosseini, publicado pela primeira vez em 2007.

Lá se vão 18 anos atravessando o túnel do tempo. Um sopro. E por lá, pelo Afeganistão, talvez pouco tenha mudado, salvo que não há mais o domínio Talibã.

O importante é ler, não é escrever, diz a amiga Betinha; há muito escritores por aí, são os leitores que fazem falta. Portanto, o atraso será recuperado num piscar de olhos. Depois, se ela ainda não sabe, descobrirá que Hosseini é o autor de O caçador de pipas e, assim, ela poderá continuar deitando os olhos até descobri-lo na estante, quem sabe?

É tanto “se” na vida de cada um... E como sou um homem prático, imaginei que se a menina tiver fôlego para as 384 páginas da edição brasileira de A Cidade do Sol, a vida nos dias de chuva do outro lado do mundo será preenchida com a realista história de Hosseini.

Só mais um naco de spoiler para dizer-lhe que Hosseini mostra a realidade das mulheres em um Afeganistão controlado pelo grupo extremista Talibã sem nos poupar da indiferença que a sociedade tem para com elas. Haja indiferença. É muito grave!

São duas mulheres. Na primeira parte, o leitor conhece Marian, 33 anos, uma bastarda. Perdeu a mãe quando ela tinha quinze anos, o homem que deveria ser seu pai a deu em casamento a um sapateiro, um homem mais velho, e ela acreditava que deveria viver para servi-lo.

Na segunda, conhece Laila, 14 anos, inteligente, filha de um professor, aplicada na escola e orientada desde sempre que a vida é muito maior que se casar e ter filhos, ainda que sua cultura lhe dissesse o contrário. A partir desse momento, o destino acaba unindo a vida dos personagens, e o medo, a angústia, acompanha o leitor sem saber o que de cruel ainda poderia acontecer até a percepção de que somos iguais na diferença com os nossos pensamentos, sentimentos e mistérios.

A cidade do Sol para quem quer ler algo que o faça refletir é um prato cheio a nos fazer pensar sobre a injustiça e o sofrimento que as mulheres passam ao redor do mundo.

Em tempo, menina, guardarei um pouco do sol que ilumina as cortinas das janelas da casa para qualquer eventualidade enquanto há uma certa brisa e a esquina permanece aberta.

José Carlos Sant Anna,

maio de 2025.

 

Poética

  Imagem Pixabay Tudo parado.  É inútil  o arrastar-se do caracol.    Sôfrego,  o gastrópode terrestre corpo mole, cor parda e...