quarta-feira, 16 de abril de 2025

A taurina

 

Ainda exala um cheiro bem forte do corpo da taurina. E ele não perdeu o bonde, como se vê, por isso repete ansioso: houve, sim. Do verbo haver empregado com o sentido de existir. Sempre há qualquer coisa, em qualquer reino, Dinamarca ou não, verdade última, queira-se ou não. É o que todo mundo diz. E as coisas acontecem num piscar de olhos. E, ao abri-los, logo se descobre que o sol já recortou as nuvens, mas não é o ponto final da história. Houve, sim, qualquer coisa, sem adiar o dia. E ele se pergunta: o que teria havido para se ter tanta certeza de que verdadeiramente houve, embora não tenha virado manchete? Não, não foi um caso de amor riscado à canivete no tronco da goiabeira até porque, na idade desses pombos, tais arroubos ou arrulhos, ainda que intensos, seriam um destempero. O certo é que ele não saberia dizer o nome da coisa ou não quis dizê-lo mais ou menos com receio de estar cometendo um erro. É certo. Eles sabiam que havia um desejo de arder naquela cana entre um canino e outro depois da broca ter rasgado um molar para a entrada de uma coroa. Sim, houve um prenúncio, por assim dizer, um chamado, uma estreita possibilidade, pois havia um canal que os unia e os desvelava em tempos de alquimia. Houve, sim. É certo também, quase dez dias de hiato, que um pequeno jorro cuja saliva se mantém intacta, insolúvel, não era ficção porque o galo não parou de cantar nas madrugadas, o beijo chegou sem ser anunciado e o que parecia efêmero ficou parado no ar como um beija-flor. Como se sabe, o melhor encontro é sempre o penúltimo e, pela casa adentro, ele imagina que haja, entre interrogações, uma canção de espera nos lábios da taurina que vestia uma blusa lisa, saia estampada, máscara, touca, jaleco e uma natureza desarvorada no alçapão. 


José Carlos Sant Anna, 

16 abril de 2025.


8 comentários:

  1. Dizem que Eros não nasce da inteligência e nem da vontade. De passagem ou não. Ele impõe. E o poeta Sant Anna surpreende e volta em tons marsala e ágape com uma escrita pragmática, inebriante e belíssima ,ao seu estilo, de ousadia e luxo.
    Parabéns e Seja muito bem-vindo !

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  2. Hoje passando aqui
    para conhecer e me encantar
    com aas publicações.
    Vou ficar contente se receber
    sua visita no
    Espelhando.
    Deixo aqui
    Com Versos
    Renascimento

    Que todo dia seja dia de Renascer
    Para florescer e perfumar para Depois
    Deixar sementes para um Amanhã
    Mesmo que não estejamos nele para a Colheita

    Bjins
    CatiahôAlc.

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  3. Um texto em que o verbo haver nos persegue na sua
    existência. E com Taurina no nosso encalce.
    Mesmo sem se ver o nome do autor já se sabia de quem se trata.
    Amanhã pode não ser outro dia, mas "Eros de Passagem"
    deixa um rasto até Eugénio de Andrade. Isto promete.
    Está perdoado, José. :)
    Merece. Sempre.
    Abraço
    Olinda

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  4. Boa tarde meu saudoso Amigo Poeta !
    Seja Bem-vindo.
    Mesmo que não estivesse assinado, sabia quem era o Autor.
    A sua escrita é muito peculiar, rica e cheia de contéudo.
    Gostei muito!
    Deixo um abraço bem apertado!
    Semana boa com saúde lhe desejo.
    :)

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  5. osé Carlos,
    esse seu texto é um perfume raro: começa denso como o cheiro da taurina e vai se dissolvendo no ar com a leveza inquietante do que ficou por dizer.

    Há um jogo elegante entre o que se insinua e o que se revela — uma coreografia entre o desejo, o receio e o quase-acontecimento. O verbo houve pulsa como batida de tambor distante, marcando a presença de algo que escapou à manchete, mas não à memória. E é nessa lacuna que mora a beleza do texto: tudo que não se nomeia, mas se sente — ali, entre a broca, o beijo, a blusa lisa e a saliva suspensa no tempo.

    Você nos entrega uma crônica que parece sonhar — e a gente sonha junto, com olhos abertos, procurando o beija-flor parado no ar.

    Que bom que houve. Mesmo que ninguém saiba exatamente o quê.

    Abraços
    Daniel
    https://gagopoetico.blogspot.com/2025/04/bolero-para-dois-sendo-um-lua.html

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  6. Olá Eros,
    Houve, sim.
    E ainda há qualquer coisa flutuando entre o hálito e a lembrança. A Taurina, de carne, tempo e instinto, não deixou rastro por descuido, mas por precisão.
    Como quem sabe que a eternidade só se faz nos fragmentos. Ela passou ou ficou? como ficam as palavras que não se dizem, mas que o corpo murmura sem esforço.
    Não se tratava de amor gritado, desses que viram manchete e se esgotam na euforia. Era coisa de subsolo, de alquimia.
    Ardia entre dentes e dobras, mas sem escândalo.
    Uma combustão educada, uma febre que sabia esperar. O “houve” que se repete não é por vaidade, é por certeza tímida dessas que não ousam bater no peito, mas que persistem como a brisa que entra pela fresta. E sim, havia um canal, como bem disseste, José Carlos: uma frequência de onda fina, feita de saliva, olhos e sincronia. Não era sonho, nem presságio era o agora do mistério. E, talvez, o silêncio da Taurina seja o seu maior gesto: ela segue em espera, não de retorno, mas de continuidade.
    Porque certas presenças não saem apenas mudam de sala. E ali, com sua blusa lisa, saia estampada e natureza desarvorada,
    ela ainda canta por dentro, mesmo quando cala por fora.

    Belo…
    Abraço amigo!

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  7. A Taurina

    Ainda pulsa o cheiro denso da taurina,
    um resquício — quente, firme — no ar espesso.
    Ele insiste, murmura, quase sussurra: houve, sim,
    do verbo que sustenta o existir — algo que ardeu,
    mesmo que o mundo não tenha lido na manchete.

    O sol já rasgou as nuvens, abrindo clareira,
    mas não encerra a história que ficou suspensa,
    um tempo entre o ser e o querer, o quase, o talvez.
    Não foi amor grafado à canivete na goiabeira,
    nem paixão de pombos jovens a se enfeitar no galho.

    Houve um fogo oculto — desejo que atravessou a carne,
    entre dentes e veias, a marca silenciosa da alquimia,
    um canal secreto onde se desvelam segredos e medos.
    O beijo que chegou sem aviso, como quem rouba a noite,
    ficou ali, imóvel, pairando — beija-flor no ar rarefeito.

    Ele sonha com o penúltimo encontro,
    mais verdadeiro que o último adeus.
    E ela, taurina, entre blusa lisa e saia que dança,
    máscara e jaleco, touca que encobre o riso,
    esconde a natureza selvagem no alçapão do desejo.

    Houve, sim, sempre houve,
    o que ninguém disse em voz alta,
    mas que o silêncio grita,
    e o tempo guarda — fiel, inquieto —
    como um segredo dourado na penumbra.

    CARINHOSAMENTE PARA TI, AMIGO.
    (Mais tarde postarei no blog, farei menção ao seu conto, que inspirou-me e colocarei o link do mesmo, direcionando-o para supágina aqui, confira)

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  8. Bem regressado poeta amigo José Carlos Sant Anna. Sentíamos a falta desta sua escrita peculiar, agradável. Força nesse seu verbo!
    Abraços!

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