Ela não tem pudor com as palavras, escreve-as
como se tomasse um banho de rio, sobretudo se as usa para nomear objetos,
pessoas, fatos, não importa. Ela diz o que sente. Ou sente o que diz, como se prolongasse aquele sol
do meio-dia ou estivesse comendo figos em compotas, é o que me parece quando ela
se lambuza com as palavras em seus bilhetes.
Por exemplo, ela transcreve a letra e nomeia uma
valsinha de Chico Buarque e Vinicius de Moraes como samba, para acentuar o que leu nas entrelinhas da minha crônica, e o faz naturalmente, no calor
da hora. No calor da escrita.
Na tampa. Sem releitura. Sem censura.
Ela desconhece (ou seria emoção ou pressa a fazê-la meter os pés pelas mãos) que o ritmo do samba é repetitivo e quase sempre vem acompanhado de instrumentos acústicos e de percussão, enquanto o ritmo da valsa, ternário, é lento, de movimentos suaves e fluidos, é aquele que dá voltas, como um par o faz no salão ao ouvir seu ritmo. E se este interlocutor lhe diz qualquer coisa sobre a impropriedade deste uso, ela dá de ombros, como se dissesse “descomplica, se você me entendeu. Eu quero é libertar o gigante do alçapão para a alegria de Gurgel, um dos senhores da escrita criativa".
E, enquanto os céus não desabam, este enredo, que
não se tornará um samba, me faz recuar “dez casas” ou anos neste cabide. E o
faço para brincar com as palavras, que é um modo de manter a chama acesa e por saber que toda imagem corrompe, ou anula
ou inverte um sonho no dilúvio.
Aguardávamos ansiosos a mestra – mestra na
acepção da palavra é o que ela sempre foi, pois deixou marcas indeléveis em
sucessivas gerações – quando, às 14 horas em ponto, ela entrou na sala. Fitinha
na cabeça e tênis, sem meias. Avançada para a época e para uma sala de aula em
plena universidade. Ausência que nos consome e nos faz sentir seu hálito ainda
hoje.
Curiosamente, após “a chamada”, ela avisou que
não a repetiria nas aulas subsequentes, pois os alunos passariam a ocupar a
cadeira com o respectivo número no Diário de Classe. Caso a cadeira não estivesse
ocupada, o aluno seria considerado ausente. Esta foi uma das muitas idiossincrasias
da mestra. E quem não as tem? Mas não nos desencantou. A mim e aos colegas,
pois o que veio depois desanuviou a primeira impressão. Éramos os neófitos,
e ela, a mestra.
E que fique claro, como o branco da roupa de Clarindo Silva da Cantina da Lua: não me lembro da mestra por esta
singularidade, que não passa de um detalhe, e sim pelas lições sobre a
literatura, sobre o fazer e o ler ficção, nela se inclui a poesia, “a mais pura
das ficções”, que ela o fazia bem, com rigor, clareza, conhecimento, e não
retirarei, aqui e agora, estas lições das prateleiras interiores ou dos livros
que herdamos da sua pena. Predominava, à época, a escrita à mão ou a Lettera 28
ou 35, com seu ruído e engrenagem mágicos. Nela, fazíamos um pequeno nada parecer
muito grande, e descobriríamos depois que não era bem isso muito menos aquilo.
Como suas
palavras permanecem, saibamos com penhor que a professora passeava pelos
jardins da sala de aula com desenvoltura, em perfeito equilíbrio, no embate com
as coisas da literatura, inaugurando sempre uma rua nova para deleite dos que
já tinham cruzado os umbrais deste casario e tinham se curvado ante as
ampulhetas do banquete que as palavras propiciavam e que se deliciavam com o
casario em volta, como se fosse o café da esquina. Nada ficava para trás nas escaramuças com as palavras. Suas
águas ainda percorrem, sem fechaduras, taramelas ou cadeados, antigas estâncias
entre os muros da universidade.
E os sóis que em mim se arvoram me fazem dizer que
falta faz àquela menina uma destas pequenas lições para não confundir as
fronteiras do real e do fictício – que falta faz ela não ter sido colega de
turma – ou do que é tomado como “fingimento” na obra literária. Se ela soubesse...
“A obra é a soma de todas as leituras; se permanece na gaveta, não há leitura, e
se não há leitura, não há obra”, dizia a mestra, ela repensaria que o que há na
sua busca ou o que há cavado na sua túnica não está nas entrelinhas, mas há,
sim, esteios abertos. E, se isto é verdade, pode ter lugar para um Roberto
Carlos ou para um D. Juan Carlos, apócrifo, como ela sugere.
José Carlos Sant Anna,
janeiro de 2025.