–
Lídia, a que horas é o seu voo?
Perguntou como
se ele não soubesse a hora de partida do seu voo. A retórica sempre cai bem, é o que Carlos pensa enquanto desenha mentalmente as linhas da chuva e admira o nu feminino na parede da sua oficina
de trabalho como se estivesse delirando ou estivesse num céu de esquecimento. Às vezes, transcende a espiral e
enxerga neblina de incêndio no pulsar do tempo e, por instinto, os olhos se
calam diante das portas seladas, mas segue tocando a vida.
Carlos sabe pela monotonia das tardes que somos barcos e marinheiros e
cada momento lavrado acrescenta algo na vida de cada indivíduo. Às vezes, não
se percebe o ocorrido pela simetria da laranja. Em contrapartida, cada vez que isso acontece acaba por
subtrair algo que já existia e, mais tarde, se percebe que houve uma espécie de
substituição das peças corroídas na engrenagem em movimento.
Carlos
não faz a checagem do seu motor semanalmente ou a cada seis meses. Seria a hora de fazê-lo por conta da idade? Ele se pergunta a todo momento, consciente de que é preciso. Urge. Seu itinerário é o conhecer. Sem
pressa, atento aos detalhes, ele acabou de completar a travessia de "O buraco da parede". Esse gesto pode
parecer estranho. Metafórico. Mas Carlos ainda retém em uma das mãos a
comprovação do gesto, da ação.
Carlos
pensa, olhos fechados, no afogamento do personagem em um dos contos enfeixados
na coletânea. Pensa em Rubem Fonseca. Olha para sua biblioteca da mesa de
trabalho. Ali, ele cavou e escavou cada um daqueles livros de Rubem.
O Buraco
na parede é o título de uma das últimas publicações dele, Rubem Fonseca. Ele
morava no Leblon. Morreu a caminho de uma clínica em Botafogo.
Tinha
94 anos. Já vivia em reclusão compulsória por força da idade. Assim, não foi o
vírus da pandemia que o pegou, seu velho coração deu sinais de cansaço e apagou, apagando o seu corpo completamente. Ele era um exímio contador de história. Sem explicações de qualquer
natureza, sua inventividade vestia um colete à prova de balas e saía desafiando
a boa índole de cada leitor.
Não é
certo de que ele soubesse que carregava essa proteção, esse anteparo. O que ele sabe é que o
colete se integrou ao seu corpo durante os anos de trabalho na polícia civil do
Rio de Janeiro.
Carlos
se desanuvia e passa a limpo as notícias veiculadas pela mídia, olhando na sua
biblioteca os livros de Rubem, colados um ao outro. Na vertical, ele olha na
prateleira de romances brasileiros os de Rubem. Entre contos e romances, ele
escreveu 30 livros.
Com sorriso largo, Carlos contou 18 dos 30
na sua estante. Ruminava essas coisas em transe quando ouviu a voz de Lídia
reverberando nas paredes do seu gabinete como se adivinhasse o seu torpor e
quisesse arrebatá-lo daquele transe.
– É
uma sorte poder prestar atenção na obra dele, nunca me esqueci de Gazela,
aquele conto em que a personagem não quer tirar a máscara em pleno carnaval para
não revelar que estava sem um dente na frente.
Carlos levanta o olhar e Lídia não o deixa
dizer nada, colocando o dedo indicador, com malícia, entre os seus lábios,
massageando-os com lascívia.
–
Parecem inaudíveis assim dispostos na prateleira, porém é bom reconhecê-los e
habitá-los novamente para que eles se sintam felizes enquanto Fonseca viaja.
Lídia é um avião que não para de aterrissar na vida de Carlos, desde a sua última viagem à cidade de Belo Horizonte para uma palestra em uma universidade local. Ela é uma madrugada a roubar-lhe o ar. Esbelta, sapatos altos, fina elegância, quando ela chega, escancara portas e janelas da sua casa e passa os dias resvalando as vogais do seu nome no obscuro desejo até a hora da volta à sua terra.
José Carlos Sant Anna
junho de 2025
Rubem Fonseca (1925-2020), escritor
brasileiro, considerado um dos maiores ficcionistas do Brasil. Ganhou
vários prêmios, entre eles o Jabuti e o Camões. Autor de uma
vasta obra, constituída de romances e contos. A violência urbana é o pano de fundo da sua obra. Nasceu em Juiz de
Fora, Minas Gerais, no dia 11 de maio de 1925. Era filho de portugueses. Ainda menino, transferiu-se para o Rio de Janeiro. Estudou Direito na Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro,
formando-se em 1949. Entrou para a polícia como comissário do 16º Distrito
Policial de São Cristóvão, no Rio de Janeiro.
Fonseca estreou na literatura em 1963 com o livro de contos Os Prisioneiros obtendo o imediato reconhecimento da crítica. “Ninguém no Brasil escrevia daquele jeito: vibrante,
criativo, inquieto, desconcertante, incômodo, realista, surrealista, cético,
cruel – foram pródigos em adjetivos como estes os seus entusiastas de 1ª hora”,
enumerou o jornalista Sérgio Augusto, no texto “Estreia
Consagradora”, publicado na reedição de Os Prisioneiros pela editora Agir, em
2009.
Depois de lançou em 1975 Feliz Ano Novo. Devastadoras histórias. Proibido e recolhido pela censura do regime militar, a obra continha matérias “contrárias à moral e aos bons costumes”. Foi liberada em 1989, depois de longa batalha judicial. Agosto (1990), mistura de História e ficção, se passa em agosto de 1954, época em que o caos e escândalos políticos aparecem diariamente nas páginas dos jornais. O livro aponta os vultos históricos do episódio que culmina com o suicídio de Getúlio Vargas como se fossem protagonistas do próprio romance.
Seu estilo cru revelado na narrativa de contos, crônicas e romances foi chamado de "realismo feroz". Bandidos e heróis em suas narrativas são amorais e cruéis. Rubem Fonseca faleceu no Rio de Janeiro, em decorrência de um infarto, no dia 15 de abril de 2020.
Obras de Rubem Fonseca
Contos
- Os
Prisioneiros (1963)
- A
Coleira do Cão (1965)
- Lúcia
McCartney (1969)
- O
Homem de Fevereiro ou Março (1973)
- Feliz
Ano Novo (1975)
- O
Cobrador (1979)
- Romance
Negro e Outras Histórias (1992)
- O
Buraco na Parede (1995)
- Histórias
de Amor (1997)
- A
Confraria dos Espadas (1998)
- Secreções,
Excreções e Desatinos (2001)
- Pequenas
Criaturas (2002)
- 64
Contos de Rubem Fonseca (2004)
- Ela
e Outras Mulheres (2006)
- Axilas
e Outras Histórias Indecorosas (2011)
- Amálgama
(2013)
- Histórias
Curtas (2015)
- Calibre
22 (2017)
- Carne
Crua (2018)
Romances
- O
Caso Morel (1973)
- A
Grande Arte (1983)
- Bufo
& Spallanzani (1986)
- Vastas
Emoções e Pensamentos Imperfeitos (1988)
- Agosto
(1990)
- O
Selvagem da Ópera (1994)
- O
Doente Molière (2000)
- Diário
de um Fescenino (2003)
- Mandrake,
a Bíblia e a Bengala (2005)
- O Seminarista (2009)
- José (2011)
Rubem Fonseca, eclético, inventivo e com uma escrita brutal , como dizem os entendidos da Literatura. Li 'Agosto e Feliz Ano Novo' (esse incompleto), que em certo momento foi censurado. A violência da sua narrativa é sempre um soco no estômago, de um realismo que agride o leitor mais sensível. Bem letal. Um grande contista .Sua arte não era poética mas resultou nesse lirismo que encontro aqui no seu texto. Emoldura o retrato da Lídia a nanquim e aquarela e consigo ouvir daqui as repetições vogais e o som do salto alto entre abrir e fechar janelas. Disso eu gosto mais.
ResponderExcluirParabéns, lindo e lindo., como sempre.
Eros, teu texto é uma viagem dessas que a gente faz com o corpo parado e a alma andando. Carlos é um homem que pensa em silêncio, que vive em entrelinhas, que ama em suspensão. E Lídia… Lídia é como um sopro que desarruma tudo com graça.
ResponderExcluirA presença de Rubem Fonseca, aqui, é mais do que homenagem: é quase partitura do texto, conduzindo o tom, sugerindo ritmo, marcando os silêncios. Há algo de saudade e também de inquietação como se cada palavra fosse uma engrenagem desse motor que Carlos não checa, mas que pulsa mesmo assim.
Obrigada por esse encontro com tua escrita. Fiquei ali, entre a espiral, a biblioteca e o voo de Lídia. E não saí ilesa.
Beijinho meu amigo querido😘
Carlos faz bem em ficar próximo a Ruben, olhá-lo ali, nas suas estantes. Ficar próximo a Lídia, também, já que ela é avião que pousa muito em seu aeroporto.
ResponderExcluirRuben é um dos nossos grandes escritores. Já li muita coisa dele. Queria aprender a escrever como ele. Nada em sua escrita é excesso ou é exatamente o excesso de concisão que faz dele um dos grandes.
abraços.