quarta-feira, 7 de maio de 2025

A cidade do Sol

 


"Que por sorte..."

De longe é o que ela me diz em um bilhete apressado, mascando um chiclete, pretexto para quebrar o silêncio, depois de ter fotografado a rua pela janela do apartamento dos filhos onde está alojada e anexado a foto à mensagem. Assim, ela me dá conta que chove do outro lado do mundo e os balões que sobem são do cappuccino, nunca banido da ordem do dia, a dizer-me “a chuva e um friozinho invadem a cidade e pede um café bem quente, você não percebe?”

E que sorte teve a menina, que sorte, tal como ela o confessou no bilhete. Mas... há sempre um mas se sobrepondo, o que se há de fazer? Antes, deixe-me dizer-lhe que a chamo de menina dissimuladamente faz tempo. Ela permitiu essa intimidade e até a alimentou. Só essa, nenhuma outra cresceu junto com o desejo que latejava. Nunca abriu as portas para qualquer outra manifestação. Só um flerte. Dura anos. Uma idealista, romântica sem cura. Qualquer semelhança com o José Matias, de Eça de Queirós, usando saia... Ela não gostou da comparação e amuou do outro lado... 

E qual foi mesmo a sua sorte, qual, pergunta-me o leitor apressadinho? Ter encontrado na “estante do quarto da família onde está alojada”, como o diz, A cidade do Sol, do romancista e médico, nascido na cidade de Cabul, lá no Afeganistão, Khaled Hosseini, publicado pela primeira vez em 2007.

Lá se vão 18 anos atravessando o túnel do tempo. Um sopro. E por lá, pelo Afeganistão, talvez pouco tenha mudado, salvo que não há mais o domínio Talibã.

O importante é ler, não é escrever, diz a amiga Betinha; há muito escritores por aí, são os leitores que fazem falta. Portanto, o atraso será recuperado num piscar de olhos. Depois, se ela ainda não sabe, descobrirá que Hosseini é o autor de O caçador de pipas e, assim, ela poderá continuar deitando os olhos até descobri-lo na estante, quem sabe?

É tanto “se” na vida de cada um... E como sou um homem prático, imaginei que se a menina tiver fôlego para as 384 páginas da edição brasileira de A Cidade do Sol, a vida nos dias de chuva do outro lado do mundo será preenchida com a realista história de Hosseini.

Só mais um naco de spoiler para dizer-lhe que Hosseini mostra a realidade das mulheres em um Afeganistão controlado pelo grupo extremista Talibã sem nos poupar da indiferença que a sociedade tem para com elas. Haja indiferença. É muito grave!

São duas mulheres. Na primeira parte, o leitor conhece Marian, 33 anos, uma bastarda. Perdeu a mãe quando ela tinha quinze anos, o homem que deveria ser seu pai a deu em casamento a um sapateiro, um homem mais velho, e ela acreditava que deveria viver para servi-lo.

Na segunda, conhece Laila, 14 anos, inteligente, filha de um professor, aplicada na escola e orientada desde sempre que a vida é muito maior que se casar e ter filhos, ainda que sua cultura lhe dissesse o contrário. A partir desse momento, o destino acaba unindo a vida dos personagens, e o medo, a angústia, acompanha o leitor sem saber o que de cruel ainda poderia acontecer até a percepção que somos iguais na diferença com os nossos pensamentos, sentimentos e mistérios.

A cidade do Sol para quem quer ler algo que o faça refletir é um prato cheio a nos fazer pensar sobre a injustiça e o sofrimento que as mulheres passam ao redor do mundo.

Em tempo, menina, guardarei um pouco do sol que ilumina as cortinas das janelas da casa para qualquer eventualidade enquanto há uma certa brisa e a esquina permanece aberta.

José Carlos Sant Anna,

maio de 2025.

 

quarta-feira, 30 de abril de 2025

Judith

 

Imagem Pixaby

Ela não tem pudor com as palavras, escreve-as como se tomasse um banho de rio, sobretudo se as usa para nomear objetos, pessoas, fatos, não importa. Ela diz o que sente. Ou sente o que diz, como se prolongasse aquele sol do meio-dia ou estivesse comendo figos em compotas, é o que me parece quando ela se lambuza com as palavras em seus bilhetes.

Por exemplo, ela transcreve a letra e nomeia uma valsinha de Chico Buarque e Vinicius de Moraes como samba, para acentuar o que leu nas entrelinhas da minha crônica, e o faz naturalmente, no calor da hora. No calor da escrita.

Na tampa. Sem releitura. Sem censura.

Ela desconhece (ou seria emoção ou pressa a fazê-la meter os pés pelas mãos) que o ritmo do samba é repetitivo e quase sempre vem acompanhado de instrumentos acústicos e de percussão, enquanto o ritmo da valsa, ternário, é lento, de movimentos suaves e fluidos, é aquele que dá voltas, como um par o faz no salão ao ouvir seu ritmo. E se este interlocutor lhe diz qualquer coisa sobre a impropriedade deste uso, ela dá de ombros, como se dissesse “descomplica, se você me entendeu. Eu quero é libertar o gigante do alçapão para a alegria de Gurgel, um dos senhores da escrita criativa".

E, enquanto os céus não desabam, este enredo, que não se tornará um samba, me faz recuar “dez casas” ou anos neste cabide. E o faço para brincar com as palavras, que é um modo de manter a chama acesa e por saber que toda imagem corrompe, ou anula ou inverte um sonho no dilúvio.

Aguardávamos ansiosos a mestra – mestra na acepção da palavra é o que ela sempre foi, pois deixou marcas indeléveis em sucessivas gerações – quando, às 14 horas em ponto, ela entrou na sala. Fitinha na cabeça e tênis, sem meias. Avançada para a época e para uma sala de aula em plena universidade. Ausência que nos consome e nos faz sentir seu hálito ainda hoje.

Curiosamente, após “a chamada”, ela avisou que não a repetiria nas aulas subsequentes, pois os alunos passariam a ocupar a cadeira com o respectivo número no Diário de Classe. Caso a cadeira não estivesse ocupada, o aluno seria considerado ausente. Esta foi uma das muitas idiossincrasias da mestra. E quem não as tem? Mas não nos desencantou. A mim e aos colegas, pois o que veio depois desanuviou a primeira impressão. Éramos os neófitos, e ela, a mestra.

E que fique claro, como o branco da roupa de Clarindo Silva da Cantina da Lua: não me lembro da mestra por esta singularidade, que não passa de um detalhe, e sim pelas lições sobre a literatura, sobre o fazer e o ler ficção, nela se inclui a poesia, “a mais pura das ficções”, que ela o fazia bem, com rigor, clareza, conhecimento, e não retirarei, aqui e agora, estas lições das prateleiras interiores ou dos livros que herdamos da sua pena. Predominava, à época, a escrita à mão ou a Lettera 28 ou 35, com seu ruído e engrenagem mágicos. Nela, fazíamos um pequeno nada parecer muito grande, e descobriríamos depois que não era bem isso muito menos aquilo.    

 Como suas palavras permanecem, saibamos com penhor que a professora passeava pelos jardins da sala de aula com desenvoltura, em perfeito equilíbrio, no embate com as coisas da literatura, inaugurando sempre uma rua nova para deleite dos que já tinham cruzado os umbrais deste casario e tinham se curvado ante as ampulhetas do banquete que as palavras propiciavam e que se deliciavam com o casario em volta, como se fosse o café da esquina. Nada ficava para trás nas escaramuças com as palavras. Suas águas ainda percorrem, sem fechaduras, taramelas ou cadeados, antigas estâncias entre os muros da universidade.

E os sóis que em mim se arvoram me fazem dizer que falta faz àquela menina uma destas pequenas lições para não confundir as fronteiras do real e do fictício – que falta faz ela não ter sido colega de turma – ou do que é tomado como “fingimento” na obra literária. Se ela soubesse... “A obra é a soma de todas as leituras; se permanece na gaveta, não há leitura, e se não há leitura, não há obra”, dizia a mestra, ela repensaria que o que há na sua busca ou o que há cavado na sua túnica não está nas entrelinhas, mas há, sim, esteios abertos. E, se isto é verdade, pode ter lugar para um Roberto Carlos ou para um D. Juan Carlos, apócrifo, como ela sugere.


José Carlos Sant Anna,

janeiro de 2025.

quarta-feira, 23 de abril de 2025

O auxiliar de mesa

 


Para início de conversa, o jovem aprendiz da cantina italiana tinha fairplay. Aliás, o mais adequado seria afirmar que ele tinha jogo de cintura, o que todo garçom precisa ter para desempenhar bem suas funções. Nesse caso, embora ele estivesse gatinhando no serviço, pelo andar da carruagem, se pressentia, o jovem parecia muito próximo de tornar-se um feiticeiro, ou seja, um descolado garçom, pois tinha humor, presença de espírito, finesse e energia para um aprendiz, mas um ajudante de mesa, o que ele era até então. 

Uma funcionária mais antiga acompanhava os passos do aprendiz à meia distância, orientando-o junto aos clientes, e ele, para  encarar aquele pequeno mundo da gastronomia, seguia sua intuição. 

Ao chegar perto da gente, solícito, ele perguntou: 

– Um filé à parmeggiana é pra esta mesa?” 

Meio irônico, perguntei-lhe se o filé estava pronto na cozinha esperando o nosso pedido, pois fora muito rápido o atendimento. 

Ele balançou a cabeça e anuiu, dizendo-me: 

– O restaurante está vazio, doutor; é Carnaval, o cliente aqui não fica esperando, o senhor conhece a Casa e sabe disso”. 

Ele não me pareceu contrafeito na resposta, embora não tivesse acrescentado outra palavra ao breve diálogo que tivemos. Sorrimos, satisfeitos. E ele ainda esperou um momento, caso houvesse algum ruído, não havendo, ele se retirou, solícito. E jantamos como se estivéssemos num mirante. Findo o jantar, aguardávamos a sobremesa. 

Teria sido premeditado? O aprendiz ia passando pela minha mesa já desnuda da louça do jantar, mas sua fiel escudeira fê-lo recuar dois passos para nos servir a sobremesa que repousava na bandeja.

Perguntei-lhe, então, se não tinha sentido o puxão do anzol, e ele, bem-humorado, disse: 

– Pela gola, doutor, sorte minha que o senhor não me apanhou pelo pescoço, pela jugular. 

Sorrimos todos novamente. Depois de um tour discreto pelo salão, ele voltou e, dessa vez, bem descontraído, antegozando suas palavras,  perguntou:

– Mais alguma coisa senhor pescador?


José Carlos Sant Anna,

4 de março de 2025.

quarta-feira, 16 de abril de 2025

A taurina

 

Ainda exala um cheiro bem forte do corpo da taurina. E ele não perdeu o bonde, como se vê, por isso repete ansioso: houve, sim. Do verbo haver empregado com o sentido de existir. Sempre há qualquer coisa, em qualquer reino, Dinamarca ou não, verdade última, queira-se ou não. É o que todo mundo diz. E as coisas acontecem num piscar de olhos. E, ao abri-los, logo se descobre que o sol já recortou as nuvens, mas não é o ponto final da história. Houve, sim, qualquer coisa, sem adiar o dia. E ele se pergunta: o que teria havido para se ter tanta certeza de que verdadeiramente houve, embora não tenha virado manchete? Não, não foi um caso de amor riscado à canivete no tronco da goiabeira até porque, na idade desses pombos, tais arroubos ou arrulhos, ainda que intensos, seriam um destempero. O certo é que ele não saberia dizer o nome da coisa ou não quis dizê-lo mais ou menos com receio de estar cometendo um erro. É certo. Eles sabiam que havia um desejo de arder naquela cana entre um canino e outro depois da broca ter rasgado um molar para a entrada de uma coroa. Sim, houve um prenúncio, por assim dizer, um chamado, uma estreita possibilidade, pois havia um canal que os unia e os desvelava em tempos de alquimia. Houve, sim. É certo também, quase dez dias de hiato, que um pequeno jorro cuja saliva se mantém intacta, insolúvel, não era ficção porque o galo não parou de cantar nas madrugadas, o beijo chegou sem ser anunciado e o que parecia efêmero ficou parado no ar como um beija-flor. Como se sabe, o melhor encontro é sempre o penúltimo e, pela casa adentro, ele imagina que haja, entre interrogações, uma canção de espera nos lábios da taurina que vestia uma blusa lisa, saia estampada, máscara, touca, jaleco e uma natureza desarvorada no alçapão. 


José Carlos Sant Anna, 

16 abril de 2025.


A cidade do Sol

  "Que por sorte..." De longe é o que ela me diz em um bilhete apressado, mascando um chiclete, pretexto para quebrar o silêncio...