Nada,
mas nada mesmo, parecia indicar, além da chuva que caía torrencialmente sobre a
cidade, que o início da noite seria tão desgastante emocionalmente para ambos,
pai e filha. E o foi.
Entramos
no elevador, eu e ela, e marcamos no painel de controle de
operação da cabine o oitavo andar. Ronronando, o bicho começou a subir em sua normalidade
e, descontraídos, sem imaginar que o tempo pode mudar a sorte de qualquer pessoa, subíamos como pássaros distraídos, quando “de repente, não
mais que de repente/ fez-se triste o que se fez contente”, como está posto
poeticamente no Soneto da Separação, de Vinicius de Morais, entre o
quinto e o sexto andares, o bicho emudeceu. Parou sem ruídos estranhos.
O verso elucida como o inesperado sob os céus de Paris, nos jardins de Luxemburgo, ou aqui, no Caminho das Árvores, acontece. A gente sabe, o inesperado sempre acontece em nosso cotidiano, não mais que "de repente". E surpreende, ferindo inimagináveis rebordos.
E assim, algo de visível perpassou naquele instante. Foi o que senti quando ela
me olhou transfigurada, enquanto absorto, eu passava em revista, como um
militar superior faz com a tropa no quartel, para entender por que estávamos
passando por aquela experiência, ou seja, como explicar para mim que submetera
minha filha a esse suplício. Involuntariamente, mas a submetera, sim. Foram 40
minutos dentro da cabine do elevador, ainda que iluminada, em pânico: eu e minha
filha; e o elevador, em pane, aguardando o técnico de manutenção da Elevadores Otis para
nos tirar do sufoco.
Explico-me
melhor.
Em cântaros, chovia sobre a cidade. Eu tinha assumido compromisso de fazer a
entrega de um pacote de livros a um colega na Estação Rodoviária. Para tanto,
saí pela lateral pelas vagas da garagem à esquerda, desocupada naquele
instante. São duas vagas de garagem, presas. Abro um pequeno parêntese: é assim
que se chama por aqui. E toquei o bonde pra Lapinha (tocar o bonde pra a
Lapinha, para quem não conhece esse jargão, bem antigo dos baianos, é cumprir um
compromisso, faz parte dos usos e costumes na banda de cá), e fechamos o
parêntese.
A Estação Rodoviária é relativamente perto de onde nós moramos; assim, em 20 minutos, apesar
da chuva, já tinha ido e voltado. Estacionei no corredor da garagem e liguei
para a filha e, inopinadamente, pedi-lhe que descesse para inverter a posição
do carro dela, uma vez que depois do jantar, ela voltaria para a casa (a dela,
embora a nossa também seja dela). É aí que a porca torce o rabo.
Ouçam-me
com atenção. E me digam, se torce ou não torce!
A
minha filha tem fobia de elevador, e eu sei disso. Não fazia sentido pedir-lhe
para descer sozinha para trocar a posição do carro. E quem disse que Freud
explica? Eu devia estar com a cabeça no mundo da lua naquele instante, "viajando", e
não sabia. Ou eu não tinha consciência de que estava nas nuvens. Logo, eu pedi e ela desceu. Claro desceu para ficar presa no elevador
comigo. Sabe, caro leitor, ela, a maioria das vezes, sobe para o nosso
apartamento pela escada e só desce de elevador comigo. Se eu não posso, ou não
estou em casa, ela usa as escadas. Se estou em casa, acompanho-a até a garagem,
e ela volta para a casa dela e eu retorno pelo elevador, pois não tenho essa
fobia.
Então,
me entendam, por favor: não é uma fobia recente, já dura 27 anos, a idade do prédio. Compreendeu?
Sim, a analista não resolveu com ela esse problema, o que eu posso fazer? E
claro, você, leitor, já pôs o dedo na ferida, ou seja, você acha que eu poderia
ter evitado que ela passasse por esse dissabor, por essa experiência amarga.
Pois é o que eu também acho. E esse é meu constrangimento, quase remorso.
Mas nem tudo é tão ruim assim, que não possa piorar, dizem os pessimistas, mas há também o outro lado da moeda. Ou seja, o lado bom, a outra margem. A vida é sempre uma realidade frágil, por isso, as fadas voam no reino da mentira, realizando proezas. Neste caso, não houve fadas, e sim a solidariedade de uma menina, a vizinha, de apenas 11 anos. Marina é o nome dela. Quando ela soube que éramos nós os "exilados" no elevador, ela se sentou no tapete de entrada do seu apartamento para aguardar o técnico. E, de vez em quando, ela se levantava e batia na porta do elevador e perguntava, quase aos gritos, se estava tudo bem. E o fazia continuadamente.
Assim, ela nos manteve espertos e vivos em sentido
figurado com os olhos fixos no outro lado das coisas.
E agora que os céus estão limpos, agradecido, digo em voz baixa, Marina foi a luz que cintilou enquanto aguardávamos a retomada da normalidade na cabine do
elevador, foi a flor que nos acolheu quando a porta foi aberta pelo técnico.
José Carlos Sant
Anna,
19 de julho de 2025