quarta-feira, 30 de julho de 2025

Marina, a fadinha

 

imagem Pixabay

Nada, mas nada mesmo, parecia indicar, além da chuva que caía torrencialmente sobre a cidade, que o início da noite seria tão desgastante emocionalmente para ambos, pai e filha. E o foi.

Entramos no elevador, eu e ela, e marcamos no painel de controle de operação da cabine o oitavo andar. Ronronando, o bicho começou a subir em sua normalidade e, descontraídos, sem imaginar que o tempo pode mudar a sorte de qualquer pessoa, subíamos como pássaros distraídos, quando “de repente, não mais que de repente/ fez-se triste o que se fez contente”, como está posto poeticamente no Soneto da Separação, de Vinicius de Morais, entre o quinto e o sexto andares, o bicho emudeceu. Parou sem ruídos estranhos. 

O verso elucida como o inesperado sob os céus de Paris, nos jardins de Luxemburgo, ou aqui, no Caminho das Árvores, acontece. A gente sabe, o inesperado sempre acontece em nosso cotidiano, não mais que "de repente". E surpreende, ferindo inimagináveis  rebordos. 

E assim, algo de visível perpassou naquele instante. Foi o que senti quando ela me olhou transfigurada, enquanto absorto, eu passava em revista, como um militar superior faz com a tropa no quartel, para entender por que estávamos passando por aquela experiência, ou seja, como explicar para mim que submetera minha filha a esse suplício. Involuntariamente, mas a submetera, sim. Foram 40 minutos dentro da cabine do elevador, ainda que iluminada, em pânico: eu e minha filha; e o elevador, em pane, aguardando o técnico de manutenção da Elevadores Otis para nos tirar do sufoco. 

Explico-me melhor.

Em cântaros, chovia sobre a cidade. Eu tinha assumido compromisso de fazer a entrega de um pacote de livros a um colega na Estação Rodoviária. Para tanto, saí pela lateral pelas vagas da garagem à esquerda, desocupada naquele instante. São duas vagas de garagem, presas. Abro um pequeno parêntese: é assim que se chama por aqui. E toquei o bonde pra Lapinha (tocar o bonde pra a Lapinha, para quem não conhece esse jargão, bem antigo dos baianos, é cumprir um compromisso, faz parte dos usos e costumes na banda de cá), e fechamos o parêntese.

A Estação Rodoviária é relativamente perto de onde nós moramos; assim, em 20 minutos, apesar da chuva, já tinha ido e voltado. Estacionei no corredor da garagem e liguei para a filha e, inopinadamente, pedi-lhe que descesse para inverter a posição do carro dela, uma vez que depois do jantar, ela voltaria para a casa (a dela, embora a nossa também seja dela). É aí que a porca torce o rabo. 

Ouçam-me com atenção. E me digam, se torce ou não torce!

A minha filha tem fobia de elevador, e eu sei disso. Não fazia sentido pedir-lhe para descer sozinha para trocar a posição do carro. E quem disse que Freud explica? Eu devia estar com a cabeça no mundo da lua naquele instante, "viajando", e não sabia. Ou eu não tinha consciência de que estava nas nuvens. Logo, eu pedi e ela desceu. Claro desceu para ficar presa no elevador comigo. Sabe, caro leitor, ela, a maioria das vezes, sobe para o nosso apartamento pela escada e só desce de elevador comigo. Se eu não posso, ou não estou em casa, ela usa as escadas. Se estou em casa, acompanho-a até a garagem, e ela volta para a casa dela e eu retorno pelo elevador, pois não tenho essa fobia. 

Então, me entendam, por favor: não é uma fobia recente, já dura 27 anos, a idade do prédio. Compreendeu? Sim, a analista não resolveu com ela esse problema, o que eu posso fazer? E claro, você, leitor, já pôs o dedo na ferida, ou seja, você acha que eu poderia ter evitado que ela passasse por esse dissabor, por essa experiência amarga. Pois é o que eu também acho. E esse é meu constrangimento, quase remorso.

Mas nem tudo é tão ruim assim, que não possa piorar, dizem os pessimistas, mas há também o outro lado da moeda. Ou seja, o lado bom, a outra margem. A vida é sempre uma realidade frágil, por isso, as fadas voam no reino da mentira, realizando proezas. Neste caso, não houve fadas, e sim a solidariedade de uma menina, a vizinha, de apenas 11 anos. Marina é o nome dela. Quando ela soube que éramos nós os "exilados" no elevador, ela se sentou no tapete de entrada do seu apartamento para aguardar o técnico. E, de vez em quando, ela se levantava e batia na porta do elevador e perguntava, quase aos gritos, se estava tudo bem. E o fazia continuadamente.

Assim, ela nos manteve espertos e vivos em sentido figurado com os olhos fixos no outro lado das coisas. 

E agora que os céus estão limpos, agradecido, digo em voz baixa, Marina foi a luz que cintilou enquanto aguardávamos a retomada da normalidade na cabine do elevador, foi a flor que nos acolheu quando a porta foi aberta pelo técnico.

José Carlos Sant Anna, 

19 de julho de 2025

terça-feira, 22 de julho de 2025

Acasos do cisco

 

Imagem pixabay

:)

Cai a lágrima.

Move-se o cisco

no fundo do olho


:)

Há um cisco sombrio

a soluçar baixinho

dentro de mim


:)

Irônico destino

o desencontro deixou

o cisco de olhar vazio


:)

Um cisco claro e mudo

dorme ao relento

na paz de Deus em tudo


:)

Flor de superfície

o cisco recusa sondar

a profundeza do mar


:)

Olhos comovidos

o cisco resplandece

ventura e sonho


:)

Frescor de água límpida

Transborda da taça o cisco

Sorvo interrompido


:)

Filigranas pelo caminho

à luz do cisco

a ave procura seu ninho 


:) 

Do lado de dentro

o cisco exilado

desafia o olho mágico


José Carlos Sant Anna,

                  junho, 2025

quarta-feira, 16 de julho de 2025

No entanto

 

Foto do meu smartphone


Deve existir alguma sombra

nos espelhos partidos

talvez nunca se saiba

o porquê

ou não se queira sabê-lo

ou se fechem as cortinas

ao vago desejo e à luz efêmera

 

Na inquietação do silêncio,

no rumor do vento,

num acaso da rua

ou nos céus de chumbo

há qualquer coisa

além do peso no horizonte

que se agiganta à noite.

 

A mim, bastam as impressões do dia!


                                José Carlos Sant Anna,

                                    29 de junho de 2025


terça-feira, 8 de julho de 2025

Arabescos

 

Imagem Pixabai

Leves arabescos 

tatuados 

na correnteza do instante 

avançam nas brumas 

da urgência do tempo; 

leves arabescos 

nas veredas da existência, 

raízes ávidas, 

velando a face da noite 

nos vestígios da ausência. 

Leves arabescos 

na aspereza dos penhascos 

resvalam para os mares 

em ritmo sincopado 

à sombra de um gesto 

nos lapsos 

da tinta nas pontas dos dedos

como um polvo.


                        José Carlos Sant Anna, 

                                        julho de 2025


quarta-feira, 2 de julho de 2025

Rubem

 


– Lídia, a que horas é o seu voo?

Perguntou como se ele não soubesse a hora de partida do seu voo. A retórica sempre cai bem, é o que Carlos pensa enquanto desenha mentalmente as linhas da chuva e admira o nu feminino na parede da sua oficina de trabalho como se estivesse delirando ou estivesse num céu de esquecimento. Às vezes, transcende a espiral e enxerga neblina de incêndio no pulsar do tempo e, por instinto, os olhos se calam diante das portas seladas, mas segue tocando a vida.

    Carlos sabe pela monotonia das tardes que somos barcos e marinheiros e cada momento lavrado acrescenta algo na vida de cada indivíduo. Às vezes, não se percebe o ocorrido pela simetria da laranja. Em contrapartida, cada vez que isso acontece acaba por subtrair algo que já existia e, mais tarde, se percebe que houve uma espécie de substituição das peças corroídas na engrenagem em movimento.

Carlos não faz a checagem do seu motor semanalmente ou a cada seis meses. Seria a hora de fazê-lo por conta da idade? Ele se pergunta a todo momento, consciente de que é preciso. Urge. Seu itinerário é o conhecer. Sem pressa, atento aos detalhes, ele acabou de completar a travessia de "O buraco da parede". Esse gesto pode parecer estranho. Metafórico. Mas Carlos ainda retém em uma das mãos a comprovação do gesto, da ação.

Carlos pensa, olhos fechados, no afogamento do personagem em um dos contos enfeixados na coletânea. Pensa em Rubem Fonseca. Olha para sua biblioteca da mesa de trabalho. Ali, ele cavou e escavou cada um daqueles livros de Rubem.

O Buraco na parede é o título de uma das últimas publicações dele, Rubem Fonseca. Ele morava no Leblon. Morreu a caminho de uma clínica em Botafogo.

Tinha 94 anos. Já vivia em reclusão compulsória por força da idade. Assim, não foi o vírus da pandemia que o pegou, seu velho coração deu sinais de cansaço e apagou, apagando o seu corpo completamente. Ele era um exímio contador de história. Sem explicações de qualquer natureza, sua inventividade vestia um colete à prova de balas e saía desafiando a boa índole de cada leitor.

Não é certo de que ele soubesse que carregava essa proteção, esse anteparo. O que ele sabe é que o colete se integrou ao seu corpo durante os anos de trabalho na polícia civil do Rio de Janeiro.

Carlos se desanuvia e passa a limpo as notícias veiculadas pela mídia, olhando na sua biblioteca os livros de Rubem, colados um ao outro. Na vertical, ele olha na prateleira de romances brasileiros os de Rubem. Entre contos e romances, ele escreveu 30 livros.

    Com sorriso largo, Carlos contou 18 dos 30 na sua estante. Ruminava essas coisas em transe quando ouviu a voz de Lídia reverberando nas paredes do seu gabinete como se adivinhasse o seu torpor e quisesse arrebatá-lo daquele transe.

– É uma sorte poder prestar atenção na obra dele, nunca me esqueci de Gazela, aquele conto em que a personagem não quer tirar a máscara em pleno carnaval para não revelar que estava sem um dente na frente.

    Carlos levanta o olhar e Lídia não o deixa dizer nada, colocando o dedo indicador, com malícia, entre os seus lábios, massageando-os com lascívia.

– Parecem inaudíveis assim dispostos na prateleira, porém é bom reconhecê-los e habitá-los novamente para que eles se sintam felizes enquanto Fonseca viaja.

Lídia é um avião que não para de aterrissar na vida de Carlos, desde a sua última viagem à cidade de Belo Horizonte para uma palestra em uma universidade local. Ela é uma madrugada a roubar-lhe o ar. Esbelta, sapatos altos, fina elegância, quando ela chega, escancara portas e janelas da sua casa e passa os dias resvalando as vogais do seu nome no obscuro desejo até a hora da volta à sua terra.


José Carlos Sant Anna

junho de 2025


Rubem Fonseca (1925-2020), escritor brasileiro, considerado um dos maiores ficcionistas do Brasil. Ganhou vários prêmios, entre eles o Jabuti e o Camões. Autor de uma vasta obra, constituída de romances e contos. A violência urbana é o pano de fundo da sua obra. Nasceu em Juiz de Fora, Minas Gerais, no dia 11 de maio de 1925. Era filho de portugueses. Ainda menino, transferiu-se para o Rio de Janeiro. Estudou Direito na Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro, formando-se em 1949. Entrou para a polícia como comissário do 16º Distrito Policial de São Cristóvão, no Rio de Janeiro.

Fonseca estreou na literatura em 1963 com o livro de contos Os Prisioneiros obtendo o  imediato reconhecimento da crítica. “Ninguém no Brasil escrevia daquele jeito: vibrante, criativo, inquieto, desconcertante, incômodo, realista, surrealista, cético, cruel – foram pródigos em adjetivos como estes os seus entusiastas de 1ª hora”, enumerou o jornalista Sérgio Augusto, no texto “Estreia Consagradora”, publicado na reedição de Os Prisioneiros pela editora Agir, em 2009.

Depois de lançou em 1975 Feliz Ano Novo. Devastadoras histórias. Proibido e recolhido pela censura do regime militar, a obra continha matérias “contrárias à moral e aos bons costumes”. Foi liberada em 1989, depois de longa batalha judicial. Agosto (1990), mistura de História e ficção, se passa em agosto de 1954, época em que o caos e escândalos políticos aparecem diariamente nas páginas dos jornais. O livro aponta os vultos históricos do episódio que culmina com o suicídio de Getúlio Vargas como se fossem protagonistas do próprio romance. 

Seu estilo cru revelado na narrativa de contos, crônicas e romances foi chamado de "realismo feroz". Bandidos e heróis em suas narrativas são amorais e cruéis. Rubem Fonseca faleceu no Rio de Janeiro, em decorrência de um infarto, no dia 15 de abril de 2020.

Obras de Rubem Fonseca

Contos

  • Os Prisioneiros (1963)
  • A Coleira do Cão (1965)
  • Lúcia McCartney (1969)
  • O Homem de Fevereiro ou Março (1973)
  • Feliz Ano Novo (1975)
  • O Cobrador (1979)
  • Romance Negro e Outras Histórias (1992)
  • O Buraco na Parede (1995)
  • Histórias de Amor (1997)
  • A Confraria dos Espadas (1998)
  • Secreções, Excreções e Desatinos (2001)
  • Pequenas Criaturas (2002)
  • 64 Contos de Rubem Fonseca (2004)
  • Ela e Outras Mulheres (2006)
  • Axilas e Outras Histórias Indecorosas (2011)
  • Amálgama (2013)
  • Histórias Curtas (2015)
  • Calibre 22 (2017)
  • Carne Crua (2018)

Romances

  • O Caso Morel (1973)
  • A Grande Arte (1983)
  • Bufo & Spallanzani (1986)
  • Vastas Emoções e Pensamentos Imperfeitos (1988)
  • Agosto (1990)
  • O Selvagem da Ópera (1994)
  • O Doente Molière (2000)
  • Diário de um Fescenino (2003)
  • Mandrake, a Bíblia e a Bengala (2005)
  • O Seminarista (2009)
  • José (2011)



quarta-feira, 25 de junho de 2025

Poética

 

Imagem Pixabay

Tudo parado. 

É inútil 

o arrastar-se do caracol. 

 

Sôfrego, 

o gastrópode terrestre

corpo mole, cor parda

e concha calcária espiralada

se mexe na avenida movimentada

 

no sinal, abre e fecha; 

abre e fecha; abre e fecha. 

 

Cada saída, um muro; 

cada retorno, um círculo. 

 

E a rápida geografia da avenida 

nada mais é 

do que poesia em estado bruto.

 

Dos meus alfarrábios,

José Carlos Sant Anna, s/data


terça-feira, 17 de junho de 2025

Salmo

 


Para Walmir Sant Anna Filho, meu irmão

(in memoriam)

...

E outra luz da casa se foi.

É natural. Pouco a pouco diminui 

o calor nas conversas na sala de jantar

e a névoa das respirações perde-se.

Tudo é aragem quando se dissipa

o que seria a tua última estação

sem deixar-te tempo

para a sobremesa posta à mesa.


Findou o banquete da tua vida

agora a tua ausência nos dói.


                            José Carlos Sant Anna



Marina, a fadinha

  imagem Pixabay Nada, mas nada mesmo, parecia indicar, além da chuva que caía torrencialmente sobre a cidade, que o início da noite seria t...