segunda-feira, 10 de novembro de 2025

Fiat lux

 


Entre tantos,

perdem-se olhares

em morros violentados

por armas e drogas

enquanto as ondas do mar

se encontram nos vítreos

dos meus olhos,

sinal de que

se novos meus olhos não estão,

parecem ressignificados

para outras viagens

é a única certeza.

 

José Carlos Sant Anna

6/11/2025






segunda-feira, 3 de novembro de 2025

O grito

 


Cintila a tarde em gozo,

a espuma transborda  

pelos vãos das portas,

transpassa o silêncio,

veste uma página 

em branco 

e se põe a dançar no pátio 

esgarçando a tule

que a veste 

com as pontas dos dedos.

E canta o malho, 

e resfolega o bandoneon 

e transborda a taça 

em macios borbotões. 

Lento o rio oculto da seiva 

flui depois de um grito 

prolongado.

 

José Carlos Sant Anna
    11/outubro/2025.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

O que vão dizer?

 


Para Alís,


– ¿Cómo supiste que uso lápiz labial rojo?

Intrigado, Carlos não dizia nada. Apenas observava a boca. Sedento. Ela, desprovida de troncos, e membros, e cabeça, como não? havia a boca no meio da sala, "só, somente só, boca, boca, boquinha, assim vou lhe chamar", sedenta também. É o que parecia.

Incandescente, a pergunta da boca reverberava entre as paredes do apartamento. A única que a boca fez antes de passear pelos cômodos do ap.. Ela se bastava é o que parecia dizer enquanto andava de um lado a outro com desenvoltura.

Carlos, ainda intrigado, lhe estendeu uma taça de vinho. A boca declinou. Onde o rosto se completava? Olhos? Nariz? Cabeça? E os membros? Transparentes?

Carlos teve impulso de encostar-lhe a taça de vinho que degustava para entreabrir seus lábios, forçando-a a aceitá-lo. Não o fez. Mas lhe perguntou, com desvelo, porque achava a cena inusitada, e porque não queria também parecer desrespeitoso com a boca:

– Então, por que você não me beija?

Não houve resposta. Carlos entrou no banheiro, a boca o acompanhou. Puxou o zíper, a boca virou para o outro lado, mas não saiu do banheiro. Aguardou que ele puxasse a descarga. Carlos teve um impulso: saiu sem ensaboar as mãos. E a boca não lhe disse: "volte, onde fica a higiene, lave as mãos". Ele foi à cozinha e sentiu as pegadas da boca; (uma boca que tem uma boa pegada como esta, assusta, não é mesmo? - se perguntou). Entrou no quarto, no gabinete de trabalho, e a boca, decidida, lhe seguia os passos.

Carlos arriscou:

– Acho que você tem razão boca, as pessoas devem dar um tempo para se conhecerem. Se você soubesse o quanto eu queria avançar o sinal, sem saber o que ocorreria. 

A boca fingiu não entender que era com ela que Carlos falava. Mas entendia tudo. Sua expressão labial não mudava, e a boca tinha o senso incrível de direção, pois não perdia Carlos do seu alcance. Conheceu todo seu espaço, seu habitat, sua morada, porque não saía de perto dele. Assim lhe parecia: aquela boca tinha olhos.

Aquele rubro se mantinha inalterado, aqueles lábios pediam para serem tocados, mordidos. Era tudo que ela queria, ele supunha. Seria a vergonha que não a deixaria que ela lhe pedisse um beijo, como parecia desejar?

Por sua vez, Carlos sabia que uma lambida naqueles lábios vermelhos despertaria a boca para cumprir as promessas que se lia na transparência de cada “olhar”. 

E já passava da meia-noite e a boca-cinderela não se despedia. Instigado como estava, Carlos resolveu deitar-se. Apagou a luz e a boca se deitou ao seu lado.

Amanheceu. O invisível que existia na boca persiste e Carlos desanda por descaminhos a repetir: vão dizer que a boca não existe.  

 

(José Carlos Sant Anna)


terça-feira, 21 de outubro de 2025

Do meu Diário

 



    Atravesso a claridade úmida desta manhã de primavera. O rastro da chuva escorre pelos vidros das janelas. Eu me abalanço nos longes de mim e Bach me ouve enquanto as notas suaves de suas sonatas se propagam pela sala sem dobras na sua duração. Finjo e sonho. E relembro amores breves trazidos pela vida nas noites brancas como quem salva um afogado. Da minha biblioteca, o Misto-quente me convida para uma degustação em seu grafite urbano. É Bukowski, gentil, gourmet, como dizê-lo?, ainda sóbrio. Na tela do computador se lê um comentário pretensioso que me traz sentida ausência: “O papel do escritor é surpreender o leitor. Pela forma ou conteúdo. Quase sempre você consegue fazê-lo pelas duas. Seja pela força dos diálogos, seja pelo conteúdo, a provocar a estesia no leitor", enquanto alquimista, o vento brinca, rodopia, atropela, murmura, geme, assobia sem querer ir embora dos meus aposentos. Nunca saberei se um dia correremos juntos, eu e o vento, mas vou levando a vida pisando em folhas secas como Nelson Cavaquinho. 

José Carlos Sant Anna,
21 de outubro de 2025

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Cena 1

 



    O gato parecia perdido ao caminhar pelas margens da ilha, quando os seus olhos se cruzaram com os de uma gata que o observava, esperando o que ele ia fazer de sua vida naquele momento. Quase nada, já se via. O gato se deixou tocar pelo olhar e estirou-se ao sol para sentir o clima sem queimar os pelos. A gata, depois de observá-lo, procurou o melhor ângulo e o capturou no click da troca de olhares e promessas. Vendo-a por dentro dos olhos, sentiu-se enredado naquela trama, e o pôr do sol da sua varanda seria o pretexto para levá-la ao seu apartamento. As canções francesas (o que se há de fazer se elas são eternas?) abafariam os miados para que não houvesse curto-circuito com a vizinhança. 

José Carlos Sant Anna, 
Primavera de 2025 





Entro em recesso para cuidar de uma pessoa da família,
assumindo o papel de cuidador para ajudar na sua permanência 
em nosso convívio. 
Usarei minha energia, na medida do possível, 
 para que ela retarde ao máximo a perda da lucidez, 
a que ainda lhe resta.
Agradeço antecipadamente a solidariedade 
e deixo um abraço para todos os amigos.










domingo, 21 de setembro de 2025

Doralice

 

"Doralice, eu bem que lhe disse

amar é tolice, é bobagem, é ilusão..."


Letra e música de Antônio Almeida 

e Dorival Caymmi, 1947.



Doralice contempla os morangos e os mirtilos sobre a mesa depois de bem lavados com detergente. Ela sabe como o fazer para deixá-los com brilho, como se tivessem sido encerados antes de expostos à mesa. Tão raro encontrá-los no mercado da praça central. “Como assim?” Pergunto em voz baixa para não incomodar o ritual da preparação do almoço. É lá que ela os compra para adoçar a boca, comendo-os de colher com leite como se ela fosse uma criança; alguém assopra essa novidade para mim como se abrisse um guarda-chuva dentro de casa. Do jeito que os comia, parecia que estava tendo um sonho erótico. Doralice gosta de ser criança e, também, dos sonhos eróticos que inundam seu corpo. Pequenas coisas para suportar o peso do mundo sobre seus ombros, diz a si mesma, ruborizando-se. E mastiga a letra da música que carrega seu nome, sem saber responder se amar é tolice, se é bobagem, se é ilusão. Doralice mantém o laço do pescoço ao João que levanta a voz à mesa, o que é raro. Duplamente, raro. Para um elogio, ao afirmar que o bacalhau à lagareiro estava excelente e, depois, voz levantada para reclamar a gargalhada à mesa, o que irrita Doralice. Ela exige muito dele? Ela tem a presunção de que ele não se sente velho demais para as demandas da amante fogosa que ela faz questão de não esconder. E isto se sustenta? Quanta tolice na pergunta. Não me ocorre nada que eu possa dizer no momento. Como? Doralice se estica toda, resignada, e se pergunta por que ela está unida a um homem que, só por acaso, se encontra à mão, perto de um tropeço? Cansada como Doralice se sente, ela não para de suspeitar da vida como se tudo em volta não passasse de uma plantação de hera, pois, como qualquer outra plantinha desta espécie no clima tropical, ela cresce rápido demais. 


José Carlos Sant Anna,

21 de setembro de 2025



domingo, 14 de setembro de 2025

Herança

 

Imagem Pixabay

                         para Maria Fernanda, aleatoriamente!


As inumeráveis águas para um café,

é o que ela me oferece. De bom grado,

me dobro ou curvo meu corpo

ante o convite; em seguida, sento-me

numa cadeira reclinável para sorver

o café sem pressa. É um culto.

Espero que meu impulso criador

dê o ar de sua graça sem nenhuma 

especulação metafísica e deixo 

que minha pulsação transcenda

o instante. A respiração é baixa, 

ritmada; tateio as bordas 

de cada palavra, de cada poema 

ante as realidades essenciais, 

que se esboçam. Sinto o calor do fogo 

enquanto examino a relação 

entre a xícara e os poetas que 

ao mesmo tempo prendem a minha atenção. 

Abrupto, me levanto, deito-me no chão 

juncado de folhas do outono

e me abandono ao verbo

 

                                    José Carlos Sant Anna, 

                                                 julho, 1, 2025


Fiat lux

  Entre tantos, perdem-se olhares em morros violentados por armas e drogas enquanto as ondas do mar se encontram nos vítreos dos m...